09 agosto 2007

Para amanhã

Jorge Wanderley

Nem sempre é o vento que abre estas janelas
E agita vegetais já resignados.
Às vezes, noite-a-dentro, um ser antigo
Surgido de outros montes lança um dado
Acaso tumultuário entre cortinas:
Espírito de amargas caravelas,
Sabor de sangue ao fôlego tomado,
Chega (nem sempre o vento) e busca abrigo
Na sala, pelos móveis, lado a lado
Com rosas e camélias meninas.

Nem sempre a noite cobre estas montanhas,
Deita olhos negros, densos, no jardim.
Às vezes, entre plantas e canteiros
Dança uma névoa de flores carpida
E noivas anuncia do infinito:
Essa promessa raro se acompanha
De fatos como abelhas e jasmins.
Cobre (nem sempre a noite) o tempo inteiro
Uma sofrida mágica, partida
Em ser e não estar, um quase grito.

Nem sempre chega até meu nome a arte
Para me converter no aturdimento
Às vezes chega apenas a certeza
Mas com vazias malas, enganada,
Um pássaro empalhado como peito:
Dama sagrada, ainda assim reparte
Migalhas de seu sonho, um rudimento.
Manhãs (nem sempre a arte) da pobreza
Urdidas na rotina palmilhada
Explodem sem ruído e sem proveito.

Ainda assim, nem sempre é de extinção
O canto-orvalho às vezes consumado.
Um globo se imagina todo luz
E, gota dágua, um pássaro impreciso
Pode deixar-lhe acesa a irrealidade:
Dali pode partir um raio à mão
Que serve oculta o bem mais preservado.
Algo (nem sempre o orvalho) assim reduz
O metro de cantares indecisos
Ao casto desencontro da verdade.

Fonte: Wanderley, J. 2001. Antologia poética. SP, Ateliê Editorial. Poema originalmente publicado em 1974 e dedicado “A Ricardo Oliveira que tem o mar à direita.”

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