23 dezembro 2007

Desarmamento universal

Felipe A. P. L. Costa

Mais de 200 mil pessoas morrem vítimas de armas de fogo a cada ano em países que não estão em guerra. Em números absolutos, o ranking mundial é liderado pelo Brasil: 36 mil brasileiros foram mortos por armas de fogo em 2004, o que corresponde a uma taxa nacional de quase 100 homicídios por dia. De acordo com o Ministério da Saúde, a trajetória ascendente dos últimos anos parece, no entanto, ter mudado de direção: o total de homicídios em 2004 representaria uma queda, pela primeira vez em mais de dez anos, em relação ao total do ano anterior. Nesse caso, uma queda na casa dos 8 por cento. Ainda assim, os números são escandalosos: cerca de um em cada seis homicídios por arma de fogo praticados em todo o mundo ocorre no Brasil.
[...]

A discussão atual sobre o desarmamento envolve, no entanto, alguns mal-entendidos. Um deles diz respeito ao suposto direito que cada cidadão teria de possuir ou não armas de fogo. Esse tipo de argumento tem sido exaustivamente explorado pelos defensores da comercialização. Para os ideólogos desse movimento, comprar armas de fogo e munição seria um direito individual, sujeito apenas a restrições de foro íntimo. Proibir a comercialização representaria, portanto, uma privação de direitos ou, pior, uma restrição à liberdade individual. Trocando em miúdos, proibir seria uma violência do Estado contra o livre-arbítrio de cidadãos honestos e trabalhadores.

Há mais de um problema nessa linha de argumentação, um deles de natureza conceitual: comprar não é exatamente um direito. No regime econômico em que vivemos, comprar (armas, carros, roupas, comida, casas, perfumes, chicletes etc.) é antes de tudo um privilégio. Isso é verdade não só em países como o Brasil, claro, mas em praticamente qualquer lugar do planeta, de Cabrobó do Mato Dentro a Nova Orleans, passando pelas maiores cidades do mundo e por muitos dos rincões mais isolados. Com dinheiro no bolso, qualquer um de nós consegue qualquer coisa em qualquer lugar do mundo; é possível, por exemplo, tomar chá em xícaras de porcelana chinesa em pleno sol saariano ou no quarto de um hotel de quinta categoria em Nova Déli. Nem por isso, entretanto, julgo que estejamos dispostos a considerar o fato de alguém poder ou não alugar o quarto de um hotel ou tomar chá importado como exemplos de direitos individuais inalienáveis. Não deveríamos, portanto, falar em restrição aos direitos ou à liberdade individual com a impertinência que esse pessoal a favor da comercialização anda fazendo. Misturar o direito (universal) à integridade e ao bem-estar físico e mental com o poder de compra ou a posse de bens e serviços é, na melhor das hipóteses, uma artimanha ideológica. No caso específico do comércio de armas de fogo, trata-se muito mais de uma propaganda oportunista elaborada pelos seus ideólogos e marqueteiros (no meio dessa gente, é bom notar, muitos já falam abertamente em aprovar também a pena de morte e, assim, consertar de vez a sociedade brasileira...)

Um segundo ingrediente dessa discussão envolve elementos mais sociológicos, como a questão da segurança pública. Ter armas de fogo em casa de algum modo aumenta o grau de segurança do proprietário e sua família? Contra exatamente que tipo de ameaça, o bicho-papão, ladrões de galinha ou criminosos sanguinários? Ao que tudo indica, a posse de armas de fogo em pouco ou nada interfere no grau de segurança do proprietário e seus familiares frente às ameaças mais belicosas. Ao contrário, muitos relatos apontam em direção oposta: a posse de armas de fogo tornaria o proprietário e sua família mais expostos e vulneráveis ao perigo. Não são poucas, por exemplo, as tragédias evitáveis envolvendo o uso de armas em acidentes ou brigas domésticas. [...]

Fonte: artigo originalmente publicado em La Insignia. Segundo o Ministério da Saúde, em 2004 foram mortos 37,1 mil brasileiros por armas de fogo; em 2005, foram 36 mil e em 2006, 34,6 mil.

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