Mistérios de um fósforo
Augusto dos Anjos
Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.
Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psiquê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!
E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
– “Cinza, síntese má da podridão,
“Miniatura alegórica do chão,
“Onde os ventres maternos ficam podres;
“Na tua clandestina e erma alma vasta,
“Onde nenhuma lâmpada se acende,
“Meu raciocínio sôfrego surpreende
“Todas as formas da matéria gasta!”
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!
Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!
E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênesis geral,
Todos os organismos são oriundos.
Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!
É o caos da ávita víscera avarenta
– Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! –
Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo ainda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
É a flor dos genealógicos abismos
– Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. –
Depois, é o céu abscôndito do Nada,
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!
Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!
Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.
Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!
Em cismas filosóficas me perco
E, vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Noniliões de moléculas de esterco.
Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;
Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!
Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!
O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!
Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjecção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!
Fonte: Anjos, A. 2004. Eu e outras poesias, 46ª edição. RJ, Bertrand. A primeira edição do livro foi publicada em 1912.
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