23 dezembro 2008

Vozes d’África

Castro Alves

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
– Infinito: galé!...
Por abutre – me deste o sol candente,
E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
– Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista – corta o mármor de Carrara;
Poetisa – tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c’roa, ora o barrete-frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela – doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!...”

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz...”

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
– Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cão!... serás meu esposo bem-amado...
– Serei tua Eloá...”

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir – Judeu maldito –
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa – arrebatada –
Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos – alimária do universo,
Eu – pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
– Condor que transformara em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p’ra os crimes meus!
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

Fonte: Alves, C. 1990. Poemas, 8a edição. RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1883.

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