16 dezembro 2008

A epistemologia

Gaston Bachelard

85.
[...]
Uma terceira ordem de objecções é adoptada pelos continuístas da cultura no domínio da pedagogia. Quanto mais se crê na continuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, mais esforços se fazem para a manter, torna-se obrigatório reforçá-la. Faz-se assim sair do bom senso, lentamente, suavemente, os rudimentos do saber científico. Tem-se repugnância por violentar o ‘senso comum’. E, nos métodos do ensino elementar, adiam-se de ânimo leve os tempos de iniciações viris, procura-se conservar a tradição da ciência elementar, da ciência fácil; considera-se um dever fazer com que o estudante participe da imobilidade do conhecimento inicial. É necessário, apesar disso, conseguir criticar a cultura elementar. Entra-se, então, no reino da cultura científica difícil.

E eis aqui uma descontinuidade que não será fácil de apagar invocando um simples relativismo: de fácil, a química torna-se, subitamente, difícil. Torna-se difícil não só para nós próprios, difícil não só para o filósofo, mas verdadeiramente difícil em si. Os historiadores da ciência não aceitarão certamente que se caracterize a cultura científica do nosso tempo como especificamente difícil. Objectarão que, ao longo da história, todos os progressos foram difíceis, e os filósofos repetirão que os nossos filhos aprendem hoje na escola com facilidade aquilo que exigiu um esforço extraordinário aos gênios solitários dos tempos passados. Mas este relativismo, que é real, que é evidente, não faz senão salientar melhor o carácter absoluto da dificuldade das ciências física e química contemporâneas, a partir do momento em que se sai do reino da elementaridade.
[...]

Fonte: Bachelard, G. 1984 [1971]. A epistemologia. Lisboa, Edições 70.

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