13 dezembro 2008

A poesia ou a circunstância

Fernando Guimarães

Construímos com parcimónia a cidade de amanhã:
pouco cimento, algumas pedras e o suor escasso das mãos...
Na tua mesa inclinada, o compasso e a régua
– ó engenheiro! – são barcos quase imóveis.

Onde ficará o mercado, o ágora, as fontes
ou a muralha? A volta, olhamos para a areia,
para as dunas redondas e estéreis, para essas sementes de quartzo
inabitáveis – pobre formigueiro humano!

Os operários pensam na ponte a construir
os seus alicerces, a frescura da água reflectida,
os barcos atravessando-a como ramos de uma árvore,
a simetria rigorosa dos arcos... Mas construí-la-ão?

Estamos sozinhos, cai o sono sobre as pálpebras
e acariciamos as cicatrizes inúteis dos nossos braços.
(O enxame, perseguido pelo vento súbito,
mergulha na terra e procura as suas flores ocas.)

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1978.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker