A poesia ou a circunstância
Fernando Guimarães
Construímos com parcimónia a cidade de amanhã:
pouco cimento, algumas pedras e o suor escasso das mãos...
Na tua mesa inclinada, o compasso e a régua
– ó engenheiro! – são barcos quase imóveis.
Onde ficará o mercado, o ágora, as fontes
ou a muralha? A volta, olhamos para a areia,
para as dunas redondas e estéreis, para essas sementes de quartzo
inabitáveis – pobre formigueiro humano!
Os operários pensam na ponte a construir
os seus alicerces, a frescura da água reflectida,
os barcos atravessando-a como ramos de uma árvore,
a simetria rigorosa dos arcos... Mas construí-la-ão?
Estamos sozinhos, cai o sono sobre as pálpebras
e acariciamos as cicatrizes inúteis dos nossos braços.
(O enxame, perseguido pelo vento súbito,
mergulha na terra e procura as suas flores ocas.)
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1978.
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