Como compramos o casal de retirantes
Roberto Drummond
Aconteceu assim:
1. Li a notícia, de três a quatro linhas, na página 5 do Estado de Minas. Dizia que o deputado Teófilo Pires, do PR, tinha denunciado a existência do tráfico de nordestinos em Montes Claros, na Assembléia Legislativa.
2. Recortei a notícia e corri à redação do Binômio. Na mesma hora, José Maria Rabêlo decidiu: eu e o fotógrafo Antônio Cocenza íamos voar para Montes Claros.
3. O avião jogava muito e eu disse a Cocenza: Se esse avião não cair conosco, nós vamos comprar um nordestino e voltar com ele para Belo Horizonte...
4. Uma manhã, em Montes Claros, tudo parecia um rebate falso. Então surgiu um pau-de-arara carregado de nordestinos. Era um caminhão com placa de Campina Grande, Paraíba, e nós o paramos.
5. O motorista, Seu Juca, o dono do caminhão e daqueles homens e mulheres empoeirados que estavam na carroceria do pau-de-arara, estacionou num curral abandonado. Mandou os retirantes descerem e os colocou em fila.
6. Enquanto eu os examinava, olhando as mãos, a boca, os dentes, Cocenza disparava sua Rolleyflex. Combinamos uma estratégia: para todos os efeitos, eu era o filho de um fazendeiro do Vale do Rio Doce, e ia precisar de um recibo da compra.
7. Depois de muita conversa, Seu Juca concordou em dar o recibo de próprio punho. Compramos um casal e nordestinos, Manuel e Francisca, por quatro mil cruzeiros (o equivalente, hoje, a cerca de duzentos dólares). Seu Juca recebeu o dinheiro e nos entregou Manuel e Francisca, que, a partir daquele momento, segundo documento em meu poder, eram meus.
8. Então surgiu um problema: estávamos sem dinheiro para as passagens aéreas de Manuel e de Francisca até Belo Horizonte. Procuramos um irmão do jornalista Cipião Martins Pereira, Edgard, e ele nos emprestou o que precisávamos.
9. Quando o avião decolou, uma comitiva, em vários carros, chefiada pelo prefeito Simeão Pires Ribeiro (irmão do deputado Teófilo Pires), vinha chegando ao aeroporto. Objetivo: tomar de nós o casal de nordestinos, para não ‘conspurcar’ o nome de Montes Claros.
10. Foi uma sorte: a reportagem, publicada com destaque pelo Binômio, teve repercussão internacional. Até a revista Time deu a notícia. Pela primeira vez, na história da imprensa brasileira, o tráfico de nordestinos era mostrado e documentado.
11. Manuel e Francisca foram levados para a fazenda de meu primo Oswaldo Drummond, em Ferros. Eram livres. Eles não se deram bem lá e voltaram. Depois tomaram o rumo de São Paulo e nunca mais deram notícia.
Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.
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