Paisagem de gritos
Nelly Sachs
Na noite, em que o morrer começa a desfazer costuras,
arranca a paisagem de gritos
a ligadura negra,
Sobre Moria, a queda de rochedos para Deus,
para a bandeira da faca dos sacrifícios
o grito-do-filho-do-coração de Abraão,
que jaz guardado na grande orelha da Bíblia.
Oh, os hieróglifos de gritos,
desenhados na porta de entrada da Morte.
Corais de feridas das flautas das gargantas quebradas.
Oh, mãos com dedos de plantas-de-medo,
enterradas nas jubas empinadas do sangue dos sacrifícios –
Gritos, encerrados com mandíbulas esfarrapadas dos peixes,
gavinha de dor das mais pequenas crianças
e da cauda do hábito soluçante dos velhos,
rasgados em azul chamuscado com rastos ardentes.
Células dos presos, dos santos,
forradas do padrão de pesadelo das gargantas,
inferno febril na casota-do-cão da loucura
de saltos agrilhoados –
É esta a paisagem de gritos!
Ascensão-ao-céu de gritos,
saídos das grades de ossos do corpo,
Setas de gritos, libertadas
de carcases sangrentos.
Grito-aos-quatro-ventos de Job
e o grito oculto no Monte das Oliveiras
como um insecto prostrado de desmaio num cristal.
Ó faca de pôr-de-sol, atirada às gargantas,
onde as árvores do sono lambendo saltam da Terra,
onde o tempo cai
junto aos esqueletos de Maidanek e de Hiroxima.
Grito de cinza de olhos de videntes cegos de martírio –
Ó olhos a sangrar
no eclipse do Sol esfarrapado
dependurados a secar-pra-Deus
no Universo –
Fonte: Quintela, P. 1998. Obras completas, vol. 3. Lisboa, Calouste Gulbenkian. O trecho acima integra um poema mais extenso, intitulado ‘A hora de Endor’, originalmente publicado em 1954.
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