04 outubro 2010

Salmo

Péricles Eugênio da Silva Ramos

Quando as madressilvas se calarem nas sebes
e o vento do céu dissolver os últimos pássaros,

quando a neblina impenetrável me apagar a vista,
anoitecendo a esposa luminosa, a voz da filha,

quando o cetro das sombras me ferir a fronte,

Senhor! não tenha sido em vão a minha vida;
mas que, nas praças da cidade, eu deixe murmurando
um pensamento de brandura;
ou pelos campos, que povoei de frondes perdulárias,
possa ficar cantando, como um lótus na corrente,
a asa meiga de um gesto de bondade.

Ao pé das serras
onde as águias pousam nos meus ombros,
dá-me forças, meu Deus, para encontrar a paz;
dá-me forças, Coração de Nuvem,
para que eu seja a pedra branca e tudo esqueça;
dá-me forças, ó Mãos de Outono, ó Pura Primavera,
para que eu dessedente os lábios na cascata de Teu Nome.

Poupa a esta sede a esponja de vinagre;
desviando a taça e o fel de minha boca,
derrama sobre mim o Teu clarão,
para que eu parta, ó Rei, sonhando eternidade;
e recoberto pelo manto que me concedeste
possa eu dormir tranqüilo junto à Face irrevelada,
alheio, para nunca mais, ao escárnio do momento perecível.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial.


0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker