19 janeiro 2011

Fotogenia de Sísifo

António Cabrita

1.
Observas o rosto hirto na vidraça
e respirando fundo sabes: a luz
alonga os traços como um remorso –
porque tudo é nosso e doutrem.
Roubas e roubam-te, do mais
à margem te mantêm, ou a vau.
Desmunido. Que cem anos
não confortam a cova de um dente,
nem refreiam o susto de quando
o silêncio bate portas – é coisa
pública. Veja-se o caso das mãos:
cinco dedos são poucos. Uma
redige o ele de solidão e já outra
congela o sangue nas torneiras.

2.
Secreto condomínio, o de cada veia
no seu galho. E grave: com um nome
morto que assobia dentro em ti.
Mexe mais que duas ou três palhas
a Dor que desova e te perfura
a gaze no pulmão: as ideais
aderem-lhe, são o teu recife.
Um dia serás tu o orifício,
a emudecida parcela inanimada.
Pois mesmo que perene o esforço
– de rasgar os cascos em águas claras
p’ra reconhecer no fundo arenoso
dedos róseos pedacinhos d’ossos
conchas e massacres – é vão.

3.
Cresceste para a rebentação
da folhagem, para o cheiro a sangue
se o colírio do amor desnuda
as paisagens. E eis-te enxertado
em árvore que já deu fruto.
Sim, não demoraste a vazar
nos buracos de fora o que constela,
intérmino, secreto, os de dentro:
a espora do medo ou o gaseificado
livor do sangue, mas serve a quem
a obsessão de achar raízes na água?
O melhor é não fechar os olhos
se um rosto fumegante acorda
nos sonhos o agrimensor de deus.

4.
Já nada entreabre. Nem ócios
nem aluviões. Vazado simplesmente
num hangar de trânsfugas,
cedes ao mais profundo desafecto.
Hum, aliciavam-te com a ‘alquimia
do amor’ tu que cálculos nem renais.
Exigem agora que te afeiçoes
à boquilha de ‘outro’, à âncora
com que sondou o fundo – ritmos,
motivos e guelras expostos até ao ranço.
Mas se já a infância não passou
de um cão afásico há-de o sedimento
dobrar-te o cachaço, apegar-te
mais ao travão do que à embalagem?

5.
Alheado, inviolável, te querias.
Interessares-te por um tufão em Macau
se hoje ainda não inquiriste sobre Plotino
as gardênias? Sazonalmente, quanto
muito (um clamor encurta razões),
atentar no número que a oblonga
língua do gato grafa à tona
das feridas. Que todo o voo é
amadurecimento antes da queda –
sabe-lo há muito. Ao fundo da garagem,
cartas de ventos e naufrágios
amontoam-se ao lado de garrafas
de lixívia e vinho – lenho que no mais
subtil da alba dessangra as madrugadas.

6.
Abraça o teu cadáver, tem frio.
Não é de hoje que a noite se abre
ao labor da morte – vê nas vitrinas
o coração lapidado da saudade.
A raros o corpo deslumbrado
cedo não solicita a exoneração
dos dons. A vida a soldo bem
nos delata e despeja asco a asco
no couto da manhã, pois (já
o escreveste) cego que não apalpa
é cego imaturo. O próprio criador
da telenovela, Homero, que amor-
talhou de rosas as manhãs e deu nome
aos direitos de autor, tem frio.

7.
Já que o corpo te extradita o sopro
derradeiro não atreles o poema.
Vê como parnasiam os amigos,
alegres esponsais da usura.
Pareciam engasgar-se contigo
no esplendor do vinho. Só a ti
alarmava a visão do coxo
que atravessa gota a gota a ínsua
das horas? Revês-lhes a finta ladina
a urna apertadas dos tomates
e fechas gelosias: que o rosto
que te desembarcou no mistério
te perca agora na obstinada
suspensão dos seus inquilinos.

8.
Não há diafragma para a melancolia.
Pode prever-se uma reparação, um espírito
que ajardine a casa – alumém e lume
não tem por missão confundir(-se)!
Um exemplo: em ti era normal,
o outono quebrava-te as mãos
pelos pulsos e amareleciam,
deslembradas. Mas pela primeira
vez não se segue o armistício.
E contudo, recolhidos como vadios
sob alpendres de parreiras,
ainda esperamos soldo,
um verso que salve do ex-
termínio as minudências.

9.
Outras não rolarão facilmente
pelo parapeito das manhas:
a tua cabeça cabe inteira
numa mão e pende do ramo
tenro que ampara a pressaga
polpa do silencio. Prazeres,
derrotas, o visco do sentimento
nutrem-lhe a sombra e até
a indevida afasia onde bicou
a cotovia. Pegas na faca
como quem sopesa um olho.
Até ao cabo e depois:
o sangue assimila tudo. Sonhas
que te é dedicada a morte.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1997.


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