06 janeiro 2011

A chegada de Lampião no inferno

José Pacheco

Um cabra de Lampião,
Por nome Pilão-Deitado,
Que morreu numa trincheira
Um certo tempo passado,
Agora pelo sertão
Anda correndo visão,
Fazendo mal assombrado.

E foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar.
O Inferno, nesse dia,
Faltou pouco pra virar –
Incendiou-se o mercado,
Morreu tanto cão queimado,
Que faz pena até contar!

Morreu a mãe de Canguinha,
O pai de Forrobodó,
Cem netos de Parafuso,
Um cão chamado Cotó.
Escapuliu Boca-Insossa
E uma moleca moça
Quase queimava o totó.

Morreram cem negros velhos
Que não trabalhavam mais,
Um cão chamado Traz-Cá,
Vira-Volta e Capataz,
Tromba-Suja e Bigodeira,
Um cão chamado Goteira,
Cunhado de Satanás.

Vamos tratar na chegada,
Quando Lampião bateu.
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
– Quem é você, cavalheiro?
– Moleque, sou cangaceiro!
Lampião lhe respondeu.

– Moleque, não! Sou vigia!
E não sou seu parceiro –
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro!
– Moleque, abra o portão!
Saiba que sou Lampião,
Assombro do mundo inteiro!

Então, esse tal vigia,
Que trabalha no portão,
Dá pisa que voa cinza,
Não procura distinção!
O negro escreveu não leu,
A macaíba comeu –
Ali não se usa perdão!

O vigia disse assim:
– Fique fora, que eu entro.
Vou conversar com o chefe,
No gabinete do centro –
Por certo ele não lhe quer,
Mas, conforme o que disser,
Eu levo o senhor pra dentro.

Lampião disse: – Vá logo,
Quem conversa perde hora –
Vá depressa e volte logo,
Eu quero pouca demora!
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo às avesso,
Toco fogo e vou embora!

O vigia foi e disse
A Satanás, no salão:
– Saiba Vossa Senhoria
Que aí chegou Lampião,
Dizendo que quer entrar –
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso, ou não.

– Não senhor! Satanás disse,
Vá dizer que vá embora!
Só me chega gente ruim,
Eu ando muito caipora –
Eu já estou com vontade
De botar mais da metade
Dos que tenho aqui pôr fora!

Lampião é um bandido,
Ladrão da honestidade:
Só vem desmoralizar
A nossa propriedade –
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar,
Sem haver necessidade!

Disse o vigia: – Patrão,
A coisa vai se arruinar!
Eu sei que ele se dana,
Quando não puder entrar!
Satanás disse: – Isso é nada!
Convide aí a negrada
E leve os que precisar!

Leve cem dúzias de negros,
Entre homem e mulher;
Vá na loja de ferragem,
Tire as armas que quiser.
É bom avisar também
Pra vir os negros que tem,
Mais compadre Lucifer!

E reuniu-se a negrada:
Primeiro chegou Fuchico,
Com um bacamarte velho,
Gritando por Cão-de-Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Tangença,
Na casa de Maçarico.

E depois chegou Cambota,
Endireitando o boné,
Formigueira e Trupezupé,
E o Crioulo-Queté.
Chegou Bagé e Pecaia,
Rabisca e Cordão-de-Saia,
E foram chamar Banzé.

Veio uma diaba moça,
Com a calçola de meia.
Puxou a vara da cerca,
Dizendo: – A coisa está feia –
Hoje o negócio se dana!
E gritou: – Eta, baiana!
Agora o tipo vadeia!

E saiu a tropa armada
Em direção do terreiro,
Com faca, pistola e facão,
Clavinote, granadeiro.
Uma negra também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.

Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada,
Disse: – Só na Abissínia!
Oh, tropa preta danada!
O chefe do batalhão
Gritou, de armas na mão:
– Toca-lhe fogo, negrada!

Nessa hora, ouviu-se os tiros,
Que só pipoca no caco.
Lampião pulava tanto,
Que parecia um macaco!
Tinha um negro nesse meio
Que, durante o tiroteio,
Brigou tomando tabaco.

Acabou-se o tiroteio
Por falta de munição,
Mas o cacete batia,
Negro enrolava no chão.
Pau e pedra que achavam,
Era o que as mãos pegavam,
Sacudiam em Lampião.

– Chega atrás um armamento!
Assim gritava o vigia.
Traz a pá de mexer doce!
Lasca os ganchos de caria!
Traz um bilro de macau!
Corre, vai buscar um pau,
Na cerca da padaria!

Lucifer com Satanás
Vieram olhar, do terraço,
Todos contra Lampião,
De cacete, faca e braço.
O comandante, no grito,
Dizia: – Briga bonito,
Negrada! Chega-lhe o aço!

Lampião pôde apanhar
Uma caveira de boi.
Sacudiu na testa dum,
Ele só fez dizer: – Oi!
Ainda correu dez braças
E caiu, segurando as calças –
Mas eu não sei por que foi!

Estava travada a luta,
Mais de uma hora fazia.
A poeira cobria tudo,
Negro embolava e gemia,
Porém Lampião ferido
Ainda não tinha sido,
Devido à grande energia.

Lampião pegou um seixo
E rebolou-o num cão,
Mas o que arrebentou?
A vidraça do oitão –
Saiu um fogo azulado,
Incendiou o mercado
E o armazém de algodão.

Satanás, com esse incêndio,
Tocou no búzio, chamando.
Correram todos os negros
Que se achavam brigando.
Lampião pegou a olhar –
Não vendo com quem brigar,
Também foi se retirando.

Houve grande prejuízo
No inferno, nesse dia:
Queimou-se todo o dinheiro
Que Satanás possuía,
Queimou-se o livro de pontos,
Perdeu-se vinte mil contos,
Somente em mercadoria.

Reclamava Lucifer:
– Horror maior não precisa!
Os anos ruins de safra,
Agora mais esta pisa –
Se não houver bom inverno,
Tão cedo aqui, no inferno,
Ninguém compra uma camisa!

Leitores, vou terminar,
Tratando de Lampião,
Muito embora que não possa
Vos dar a explicação –
No inferno não ficou,
No céu também não chegou:
Por certo está no sertão!

Quem duvidar desta história,
Pensar que não foi assim,
Querer zombar do meu sério,
Não acreditando em mim –
Vá comprar papel moderno,
Escreva para o Inferno,
Mande saber de Caim!

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado como folheto de cordel em ano desconhecido (primeira metade do século 20).


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