10 agosto 2011

Canção de mim mesmo


30.
Todas as verdades esperam em todas as coisas,
Elas não apressam o tempo de sua entrega nem resistem a ele,
Elas não precisam do fórceps obstétrico do cirurgião,
O insignificante é tão grande para mim como tudo o mais,
(O que é maior ou menor do que um toque?)

A lógica e os sermões nunca convencem,
A umidade da noite cala mais fundo em minha alma.

(Apenas aquilo que se prova para todo homem e mulher é real,
Só aquilo que ninguém nega é real.)

Um minuto e uma gota de mim estabelecem meu cérebro,
Acredito que os torrões encharcados se tornarão amantes e luzes,
E um compêndio de compêndio é a carne de um homem ou de uma mulher,
E um cimo e uma flor ali são o sentimento que eles têm um pelo outro,
E eles estão para se ramificar, ilimitadamente, por força daquela lição até que se torne onípara.
E até que um e todos nos deliciarão, e nós a eles.

31.
Creio que uma folha de relva não faz menos que a jornada diária das estrelas,
E a formiga é igualmente perfeita, e o grão de areia, e o ovo da garriça,
E a raineta é uma obra-prima para o altíssimo,
E um corredor de amoras pretas adornaria os salões do céu,
E a mais estreita junta de minha mão faz qualquer máquina parecer desprezível,
E a vaca ruminando com sua cabeça volúvel supera qualquer estátua,
E uma ratazana é um milagre suficiente para dobrar os joelhos de sextilhões de infiéis.

Percebo que incorporo gnaisse, carvão, musgo de fios longos, frutas, grãos, raízes comestíveis,
Sou todo revestido com figuras de quadrúpedes e aves,
Estou distante do que deixei atrás de mim por bons motivos,
Mas chamo de volta qualquer coisa quando desejar.

Em vão a velocidade ou a timidez,
Em vão as rochas plutônicas enviam seu velho calor contra a minha abordagem,
Em vão o mastodonte se recolhe embaixo de seus próprios ossos pulverizados,
Em vão os objetos de mantêm a léguas de distância e assumem formas diversas,
Em vão o oceano se assenta em depressões e os grandes monstros se escondem,
Em vão o urubu faz sua casa no céu,
Em vão a cobra desliza pelas plantas rasteiras e os troncos,
Em vão o alce se recolhe para as pastagens mais recônditas da floresta,
Em vão o mergulhão navega para o norte extremo em Labrador,
Eu sigo rápido, galgo até o ninho na fissura do penhasco.

32.
Penso que eu poderia mudar-me para viver com os animais, eles são tão plácidos e independentes,
De pé, eu olho para eles por muito e muito tempo.

Eles não suam nem se lamentam de sua condição,
Não se deitam e rolam acordados no escuro chorando por seus pecados,
Não me deixam enjoado discutindo seus deveres perante Deus,
Nenhum está insatisfeito, nenhum está ensandecido com a mania de possuir coisas,
Nenhum se ajoelha diante do outro, nem para os de sua espécie que viveram há milhares de anos,
Nenhum é respeitável ou infeliz na terra toda.

Então eles mostram seus laços familiares para mim e eu os aceito,
Eles me trazem sinais de mim mesmo, exibem-nos com clareza em sua posse.

Fico imaginando em que paragens encontraram esses sinais,
Terei passado por lá há muito tempo, terei sido negligente ao deixá-los cair?

Eu sigo adiante como então, como agora e como sempre,
Juntando e mostrando sempre mais e com velocidade,
Infinito e omniforme, e semelhante a esses entre eles,
Não muito exclusivo para com aqueles que alcançam minhas lembranças,
Escolhendo aqui um que eu amo, e agora vou com ele em termos fraternos.

Uma gigantesca beleza de garanhão, jovem e sensível às minhas carícias,
Cabeça com testa alta, orelhas bem separadas,
Patas lustrosas e ágeis, cauda arrastando-se no chão,
Olhos cheios de brilhante travessura, orelhas bem talhadas, movendo-se flexivelmente.

Suas narinas se dilatam à medida que meus calcanhares o abraçam,
Seus membros bem modelados tremem de prazer quando corremos e voltamos.

Eu te uso apenas por um momento, e depois te renuncio, garanhão,
Que necessidade tenho de teus passos se eu mesmo galopo com eles?
Mesmo quando estou em pé ou sentado passo mais rápido do que tu.

Fonte: Whitman, W. 2006. Folhas de relva. SP, Martin Claret. O poema todo está arranjado em 52 seções e foi originalmente publicado em 1855. As quatro primeiras seções podem ser lidas aqui.

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