Elegia, aproveitando Bach
Fernando Assis Pacheco
Este manso Bach no piano
lembra-me o meu amigo Armindo Bouceiro
morto num estoiro de automóvel
quando corria para o cinema em Loulé.
Corria, sem o saber, para a morte inimiga,
entrava apressado na neblina cega
com as mãos poisadas sobre o volante,
o cigarro entre os lábios, meio ardido.
Calcava a fundo o acelerador
espreitando aqui e ali as curvas mais difíceis,
erguendo pó, sorrindo nas ultrapassagens
como quem galopa à beira do mar.
Numa viragem deixa o carro ir
de lado a lado na estrada, sem governo,
era o dardo da morte assinalando
o meu amigo Armindo Bouceiro.
Malmequeres entre a erva, rosas silvestres
crescem agora de seus dedos finos.
Ninguém o espera em casa. E a garganta
aperta-se com tão branca ausência.
Os meses passam, a memória esquece,
enchem-se os versos de meses e olvido.
Nada é igual ao que foi antes, quer-se
em cada hora o mundo agreste e novo.
Mas hoje ouvindo minha irmã tocar
reparo como são frias e excessivas,
como são desapiedadas certas mortes
(um amigo desfeito no empedrado),
e como endurecemos de irmos vendo
morrer esses amigos indefesos
– enquanto Bach nos fala de outras coisas,
do Abril, das estrelas, da sageza.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1963.
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