A Fazenda do Manso
Frei Betto
Fui sempre um ser asfáltico, desses que precisam consultar enciclopédias quando se trata de distinguir um carvalho de um álamo. Entendi de legumes e de verduras quando, noviço no convento dominicano da Serra, em belo Horizonte, encarreguei-me da horta em 1965. Escolhia as mudas, coava o lixo para adubo, preparava a terra e semeava. Senti-me feliz no dia em que levei à cozinha o primeiro maço de alfaces frescas. E compreendi por que as pessoas que trabalham no campo são mais calmas do que as que habitam cidades: na terra, 50% faz o homem; 50%, a natureza. Assim como a gestação torna as mulheres mais pacientes.
Hoje ando por sítios e fazendas em busca de solidão para escrever. O Das catacumbas, 2º volume de minhas cartas da prisão, nasceu na fazendo do Edgar Maneira, perto de Araxá. Meu primeiro romance, O dia de Ângelo, que chegou às livrarias em maio, começou há três anos no Sítio Querença, de André Hippólito e Marlene França. E meu livro de contos, O aquário negro, foi todo escrito, em 1978, na Fazenda do Manso, próxima a Ouro Preto. Lugar histórico e de histórias à espera de um bom talento literário.
A Fazenda do Manso está intimamente ligada à figura extraordinária de seu proprietário, Tarquínio Barbosa de Oliveira. Executivo de sucesso, diretor de diversos laboratórios, em meados dos anos 70, Tarquínio, que cultivava especial interesse pela história da Rebelião Mineira (inapropriadamente qualificada de Inconfidência), ousou dar o passo que muitos homens de empresa acalentam quando se dedicam à vida intelectual: largou São Paulo, as mordomias de suas funções, a família (que mais tarde se reuniu a ele), as recepções, pegou a barraca da filha e foi acampar no alto da estrada de Saramenha, junto ao velho casarão construído pelos bandeirantes no século 17.
Não tardou muito para que Tarquínio construísse os dois conjuntos em estilo colonial, cujas paredes, e até mesmo os degraus das escadas, abrigavam seleta biblioteca com cerca de 5.000 volumes. Não havia ali um único livro sobre o qual ele não pudesse discorrer. Era uma enciclopédia viva e nisso se parecia com Fidel Castro: revelava grande interesse por qualquer assunto, da história da construção da Muralha da China à influência da Lua na evolução dos fungos. Abria o coração e a adega a pobres e ricos, adultos e crianças, como se a sua felicidade fosse proporcional à alegria que pudesse proporcionar aos amigos. Ali, entre livros e vinhos, tivemos longos papos e acompanhei o esforço que ele e sua mulher, Guida, fizeram para reativar a plantação de chá (um dos melhores que já tomei no Brasil), pôr o gado no pasto, instalar a pocilga e iniciar a criação de trutas. Porém, os bancos davam créditos cujos juros floresciam e se multiplicam muito antes que a natureza apresentasse seus frutos...
Enquanto o poder público não se interessava por restaurar a velha casa dos bandeirantes, Tarquínio dedicava-se aos estudos das Cartas chilenas, sobre as quais escreveu um ensaio clássico, e a organizar os Anais da Inconfidência. Dizia-me sempre que o suicídio de Cláudio Manual da Costa lembrava o de Vladimir Herzog. Num domingo, partilhamos verduras e assados com a presença calorosa do dr. Alceu Amoroso Lima, ouro-pretano de coração. Foi então que descobri que a estrada de terra diante daquela fazenda abrigada entre montanhas, sob um clima europeu, não conduzia apenas ao pico do Itacolomi. Levava também a um antigo quilombo, talvez o único remanescente ainda no Brasil: Lavras Novas. Já avisei a meus amigos repórteres, mas ninguém quis ver para crer.
Lavras Novas possui uma população que não ultrapassa quinhentos habitantes. Todos negros, vivendo do mesmo ofício de transformar o vime em cadeiras e cestos. Não há propriedade privada. A terra “é da santa”. Nem polícia, apenas um velho sábio que dirime os conflitos na comunidade. Nenhuma farmácia quando estive lá. Dominavam os segredos das ervas. E temi pela televisão que ameaçava chegar. Até então as novelas eram a memória da raça contada e recontada em torno da fogueira ou do lampião.
Nunca mais retornei. Deus andava apressado para desfrutar do papo do Tarquínio e levou-o há poucos anos. Morreu antes do tempo e permanece vivo no coração de meus pais, seus melhores amigos, e na arte do livro de minha mãe, Fogão de lenha, que reúne trezentos anos de cozinha mineira. Obra cozinhada e confeitada graças ao apoio dele. O que me consola é a certeza de que Tarquínio Barbosa de Oliveira teve tempo de viver o que muitos sonham e poucos têm coragem: fazer o que gosta e gostar do que faz.
Fonte: Betto, Frei. 1987. A Fazenda do Manso. Globo Rural 22: 96.
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