Alucinação
Dias da Costa
Dona Gertrudes abriu a guilhotina da boca e degolou o silêncio. Não fiquei admirado. Sabia que a sua língua era uma navalha. Não havia ninguém que lhe escapasse ao corte, nem existia reputação que não fosse golpeada por ela. Não me assombrei quando vi a cabeça do silêncio, separada do corpo minúsculo, rolar dos lábios de dona Gertrudes para o soalho, ali ficar batendo as pálpebras e agitando uma barbicha pontuda de sátiro.
Eu já não me espantava de nada. Na mesa, quando via os diabinhos andando por entre os pratos, ou quando, na água do meu copo, via boiar cabeças esquisitas, de dentes de lobo e contrações faciais mefistofélicas, contentava-me com sorrir. Pelo menos, eu julgava que sorria apenas. No entanto, todos olhavam para mim, assombrados. Minha mãe, muito pálida, ficava com o garfo no ar e uma tristeza ansiosa nos olhos. Meu pai, sem a sua rispidez antiga, perguntava-me se eu estava sentido alguma coisa. Minha tia rezava com o seu ar estagnado de água morta. Eu continuava a sorrir e levantava-me da mesa para não beber aquela água cheia de cabeças.
Dona Gertrudes continuou a falar. Minha mãe, por delicadeza, ouvia a enxurrada de maledicências que lhe saía da boca.
Pois fora um caso que espantara todo mundo. Constança... Que sonsa! Se fosse por necessidade... Mas com um marido daqueles, que lhe dava de um tudo... Somente porque o tipo se dizia poeta e andava recitando por toda parte, revirando os olhos e arrastando a voz. Aquilo chegava a ser indecente. Também, vamos e venhamos, o marido não estava pagando por inocente. Gostava de dar as suas unhadas e não deixava passar camarão pela malha...
– Imagine a senhora que uma vez tirou-se dos seus cuidados e veio me dizer uma pilhéria...
Dei uma gargalhada tão grande que dona Gertrudes parou, assustada. Eu vira dona Gertrudes nua, magra, cheia de ossos, peluda, de lunetas, o corpo cheio de diabinhos negros, convidando o sr. Gomes, marido de dona Constança, também despido, careca, apoplético, dentes podres à mostra, batendo na pança enorme palmadinhas de gozo, para dançar.
Minha mãe empalideceu e minha tia apertou nos dedos as contas do rosário preto. Dona Gertrudes fingiu-se alheada. Eu observava tudo e compreendia tudo. A palidez de minha mãe, a reza de minha tia, o alheamento de dona Gertrudes, julgavam-me doido. Eu, porém, sabia que estava completamente lúcido. Apenas via o que os outros não podiam ver. De repente, veio-me uma idéia. Se eu me fingisse de louco? Os diabinhos, que estavam agora em cima do piano, bateram palmas silenciosas, aprovando. Levantei-me e fui até a janela. No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.
– Minha mãe, a lua está grávida. E sabe de quem é o filho? É meu...
Batia no peito, orgulhoso.
– A senhora vai ser avó...
Minha mãe começou a chorar. Decididamente, ela não compreendia a honra que eu lhe dava. Fiquei aborrecido.
– Vou passear.
Na rua, apalpei a coronha da pistola automática.
– Sete tiros seguros...
Os transeuntes voltavam-se para mim, olhando-me curiosos.
– Imbecis!
Fui andando entre a multidão. Olhei o relógio. Um diabinho fugiu do mostrador e entrou-me pela manga do paletó. Comecei a me sentir irritado com aquela perseguição.
– Ah! Vocês querem me aborrecer? Eu tenho uma pistola automática!
Sete tiros!
Automóveis passavam rápidos. Dentro, cadáveres conversavam. Sim, eram cadáveres. Eu sabia que o governador dera licença, naquele dia, para os defuntos passearem de automóvel. Meu avô passou numa limusine negra. Aproveitava a licença do governador. Coitado, ele bem o merecia! Dez anos enterrado ali no campo-santo... Irra!
Um garoto passou vendendo jornais. Chamei-o. Quando ele chegou perto de mim, fui-me embora sem comprar nenhum jornal. Sentia um peso enorme na cabeça. Compreendi que o diabinho que entrara pela manga do meu paletó penetrara no meu cérebro. Isso não era pilhéria. Fiquei irritado.
– Saia daí!
O homem gordo que olhava a vitrine fitou-me espantado e retirou-se cauteloso.
A cabeça começava a doer horrivelmente.
– Você por aqui?
Era Mariana. Apertei-lhe a mão. Ela sorria, feliz.
– Venha comigo até em casa.
No portão, ficamos parados, conversando. Mariana queixou-se por eu não ter aparecido na véspera. Estava zangado? Por quê? Não sei por que aquela pergunta irritou-me. A cabeça doía-me. Marteladas fortes se repetiam dentro do meu crânio. Era o diabinho. Também, se eu o pegasse de jeito...
– Por quê?
Apalpei a pistola no bolso. De repente, vi o diabinho nos lábios de Mariana. Fazia trejeitos de símio, agitava a cauda e ironicamente perguntava:
– Por quê?
Senti uma cólera enorme. Puxei a pistola e disparei duas vezes. Mariana caiu sem um grito.
No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.
Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro.
Dona Gertrudes abriu a guilhotina da boca e degolou o silêncio. Não fiquei admirado. Sabia que a sua língua era uma navalha. Não havia ninguém que lhe escapasse ao corte, nem existia reputação que não fosse golpeada por ela. Não me assombrei quando vi a cabeça do silêncio, separada do corpo minúsculo, rolar dos lábios de dona Gertrudes para o soalho, ali ficar batendo as pálpebras e agitando uma barbicha pontuda de sátiro.
Eu já não me espantava de nada. Na mesa, quando via os diabinhos andando por entre os pratos, ou quando, na água do meu copo, via boiar cabeças esquisitas, de dentes de lobo e contrações faciais mefistofélicas, contentava-me com sorrir. Pelo menos, eu julgava que sorria apenas. No entanto, todos olhavam para mim, assombrados. Minha mãe, muito pálida, ficava com o garfo no ar e uma tristeza ansiosa nos olhos. Meu pai, sem a sua rispidez antiga, perguntava-me se eu estava sentido alguma coisa. Minha tia rezava com o seu ar estagnado de água morta. Eu continuava a sorrir e levantava-me da mesa para não beber aquela água cheia de cabeças.
Dona Gertrudes continuou a falar. Minha mãe, por delicadeza, ouvia a enxurrada de maledicências que lhe saía da boca.
Pois fora um caso que espantara todo mundo. Constança... Que sonsa! Se fosse por necessidade... Mas com um marido daqueles, que lhe dava de um tudo... Somente porque o tipo se dizia poeta e andava recitando por toda parte, revirando os olhos e arrastando a voz. Aquilo chegava a ser indecente. Também, vamos e venhamos, o marido não estava pagando por inocente. Gostava de dar as suas unhadas e não deixava passar camarão pela malha...
– Imagine a senhora que uma vez tirou-se dos seus cuidados e veio me dizer uma pilhéria...
Dei uma gargalhada tão grande que dona Gertrudes parou, assustada. Eu vira dona Gertrudes nua, magra, cheia de ossos, peluda, de lunetas, o corpo cheio de diabinhos negros, convidando o sr. Gomes, marido de dona Constança, também despido, careca, apoplético, dentes podres à mostra, batendo na pança enorme palmadinhas de gozo, para dançar.
Minha mãe empalideceu e minha tia apertou nos dedos as contas do rosário preto. Dona Gertrudes fingiu-se alheada. Eu observava tudo e compreendia tudo. A palidez de minha mãe, a reza de minha tia, o alheamento de dona Gertrudes, julgavam-me doido. Eu, porém, sabia que estava completamente lúcido. Apenas via o que os outros não podiam ver. De repente, veio-me uma idéia. Se eu me fingisse de louco? Os diabinhos, que estavam agora em cima do piano, bateram palmas silenciosas, aprovando. Levantei-me e fui até a janela. No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.
– Minha mãe, a lua está grávida. E sabe de quem é o filho? É meu...
Batia no peito, orgulhoso.
– A senhora vai ser avó...
Minha mãe começou a chorar. Decididamente, ela não compreendia a honra que eu lhe dava. Fiquei aborrecido.
– Vou passear.
Na rua, apalpei a coronha da pistola automática.
– Sete tiros seguros...
Os transeuntes voltavam-se para mim, olhando-me curiosos.
– Imbecis!
Fui andando entre a multidão. Olhei o relógio. Um diabinho fugiu do mostrador e entrou-me pela manga do paletó. Comecei a me sentir irritado com aquela perseguição.
– Ah! Vocês querem me aborrecer? Eu tenho uma pistola automática!
Sete tiros!
Automóveis passavam rápidos. Dentro, cadáveres conversavam. Sim, eram cadáveres. Eu sabia que o governador dera licença, naquele dia, para os defuntos passearem de automóvel. Meu avô passou numa limusine negra. Aproveitava a licença do governador. Coitado, ele bem o merecia! Dez anos enterrado ali no campo-santo... Irra!
Um garoto passou vendendo jornais. Chamei-o. Quando ele chegou perto de mim, fui-me embora sem comprar nenhum jornal. Sentia um peso enorme na cabeça. Compreendi que o diabinho que entrara pela manga do meu paletó penetrara no meu cérebro. Isso não era pilhéria. Fiquei irritado.
– Saia daí!
O homem gordo que olhava a vitrine fitou-me espantado e retirou-se cauteloso.
A cabeça começava a doer horrivelmente.
– Você por aqui?
Era Mariana. Apertei-lhe a mão. Ela sorria, feliz.
– Venha comigo até em casa.
No portão, ficamos parados, conversando. Mariana queixou-se por eu não ter aparecido na véspera. Estava zangado? Por quê? Não sei por que aquela pergunta irritou-me. A cabeça doía-me. Marteladas fortes se repetiam dentro do meu crânio. Era o diabinho. Também, se eu o pegasse de jeito...
– Por quê?
Apalpei a pistola no bolso. De repente, vi o diabinho nos lábios de Mariana. Fazia trejeitos de símio, agitava a cauda e ironicamente perguntava:
– Por quê?
Senti uma cólera enorme. Puxei a pistola e disparei duas vezes. Mariana caiu sem um grito.
No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.
Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro.
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