Fábula do boi filósofo
1.
Vamos no trem de gado
enjaulados em aço
como se fôssemos feras.
Logo nós, tranqüilos bois.
Vamos para a morte
no vagão da morte.
Acaso nos levam a rodeios
leilão de feira ou touradas?
Vamos para a morte
no vagão da morte.
Ruminamos na viagem
o capim da madrugada
banquete de despedida
de quinze anos de canga.
Vamos para a morte
no vagão da morte.
Levamos no lombo as marcas
do nome de nossos donos
alfabeto do diabo
gravado na carne viva:
“F F” – ferro em fogo
“C Q” – cheiro queimado
“P T” – pele torrada
“B C” – brasa no couro.
Vamos para a morte
no vagão da morte.
A cem quilômetros horários
aos nossos olhos desfilam
moirões moirões
porteiras
cercas de arame farpado
currais
cartazes de propaganda
de restaurantes
presuntos
produtos veterinários
churrascarias
hotéis.
Longe, bezerros pastando,
lavadeiras no córrego
e fazendas que se apagam
nas invernadas do orvalho.
Naquela pastagem livre
nasci cresci fiz-me boi.
Cevei-me no provisório
cobri novilha nas luas.
Hoje vou para a morte
no vagão da morte.
2.
Maquinista, pára a máquina!
Segura o trem, guarda-freio!
Quero berrar meu adeus:
Adeus, menino da guia
despenteado no vento.
Adeus, garanhões e poldras
lavando o cio no rio.
Adeus, vitelas que amei
mugindo amor, separados.
Adeus, meu cocho de milho
gamela branca de sal.
Cochilo do meio-dia
na sombra das umburanas.
Conversa muda de bois
no caminho das aguadas.
Adeus, meu dono carrasco
que me engordou para o corte.
Vou para a morte
no vagão da morte.
Trabalhador sem salário
paciente na servidão
que recompensa encontrei?
– O prêmio desta viagem
as férias no frigorífico
e a compulsória na morte.
Por que esse trem maldito
não rola no precipício?
Por que a força maior
que a dos homens não arranca
essas grades, esses trilhos?
Minha mãe deu sangue branco
ao filho do fazendeiro.
Dava o leite que era meu.
Que é feito de minha mãe?
Vamos para a morte
no vagão da morte.
Nunca engordamos homens
para comer. Nunca
nos armamos em manadas
para matá-los. Nunca.
E vamos para a morte
no vagão da morte.
Ó Deus dos Irracionais
apiedai-vos dos homens.
Também vão para a morte
nas ogivas da morte.
3.
Mas a verdade é que o boi
nunca morre totalmente.
Mesmo morto, continua
sua vida em outras vidas
outros corpos e objetos.
Ao morrer, a nossa carne
não será jogada ao lixo
nem enterrada na cova
como a carne de outros bichos.
Ao contrário: nossa carne
será vista e desejada
pesada distribuída
para a gula das cidades.
Eis-nos pastando flores
em brancas mercearias.
Expostos e tabelados
carne de sol
chã-de-dentro
alcatra, suã, filé
língua, fígado, miolos
coração dependurado.
Eu vos lavo no meu sangue
ó máquinas do matadouro
que matando ressuscitam.
4.
Não vamos para a morte
vamos para a vida.
Alimentando de vida
seremos vida na morte.
Seremos samba e sandália
de carnavais.
Merendeiras seremos.
Seremos talvez a bota
marcial,
selim de jóquei
arreios de galopar.
Cinturão de bala ou coldre,
bíblias de luxo ou sacola
de mendigo seremos.
Transformados em bola
bola-boi número cinco
enganaremos arqueiros.
Boi rolado boi chutado
na chuteira do rei.
Bexiga de boi-bola
na viela da favela
– gooooooool!
Apita, apito! É chegada
a hora de morrer e morto
de mim mesmo renascer.
Fonte: Rivera, B. 2003. Melhores poemas de Bueno de Rivera. SP, Global. Poema publicado em livro em 1971.
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