O trem de alzheimer
Renata Pallottini
Você se vai no trem dos
desmemoriados
Seu trem se vai crescendo
em força devagar
Leva consigo qualquer
coisa que você tenha pensado
Ou quisesse dizer qualquer coisa que você
acaso tenha desejado ao
longo de sua vida
Ou quiçá no fundo de sua
vida antes do trem
Não sabemos o que levam
os trens nos seus binários
Binários somos todos há a razão e o coração
Não sabemos quê seria se
as emoções falassem
Acaso houve alguma emoção
na sua vida?
Acaso você amou as monjas os pedestres
Odiou os limites a mãe
a incerteza
Terá você sentido
ciúmes repudiado os castigos
Acaso amou a Deus? Ou o
temeu como todos?
Como é silencioso esse
trem nem fumaças
Nem os apitos densos
nem o sussurro elétrico
Como é insidioso esse
trem ele te leva
Devagar e constante e
negro e sem remédio
Não há memória desse trem
nos outros homens
Ninguém sabe a que veio aonde vai não sabe
Suspeita-se que um dia há
de levar a todos
Sepultando as invejas e
todas as paixões
Mas a mim não me importam
as centelhas
Nem os fogos das máquinas
nem os sinos dos chefes
Me importa apenas a
memória e ela está morta
Ninguém responde às
perguntas inúteis
No trem dos
desmemoriados Ninguém sabe
Qual seria afinal o teor
das palavras
Houve alguma palavra?
Disse algo? Falava?
Por que o aceno ao
longe das últimas janelas?
O trem dos desmemoriados
se estende como um bicho
Porque ninguém jamais
soube da sorte que lhe cabia
Essa desordem murcha que
atinge os desmemoriados
E os desorienta essa fadiga das lembranças
Esse medo ao passado não
vivido
Será essa afinal a causa
da viagem
Razão de ter você
comprado o seu bilhete
De ter por
seu prazer renunciado à consciência
Por sua escolha ter
desistido da vida?
Você quis por acaso essa viagem incurável?
Fonte: poema publicado no livro Chocolate
amargo (2008) e republicado aqui com o devido consentimento da autora, a
quem agradeço pela cortesia.
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