26 maio 2015

Afetos, desafetos... e um adeus

Maria Eugênia Carvalho do Amaral

Ela vinha de uma família pouco dada a manifestações afetuosas. Quando menina, sofreu – e mesmo adulta nunca superou a falta que sentia de um carinho. Foi um daqueles casos quase caricatos de carência afetiva.

O pai se atrapalhava todo ao dar um simples abraço. Por vezes, após meses sem vê-la, estendia a mão ao reencontrá-la, como para um aperto de mãos no mais formal dos encontros, apesar de estar visivelmente emocionado. Ela demorou a traduzir esses sinais desencontrados e compreender que ele a amava e não sabia como dizê-lo. O afeto paterno era evidente na atenção e no cuidado cotidiano, mas ele era tão exagerado em seu zelo que a sufocava na maioria das vezes. Não sabia demonstrar ternura e tampouco dosar qualquer gesto de preocupação, transparecendo apenas uma postura autoritária desagradável.

A mãe quase a enlouqueceu. Era seca e frívola, movida pelas aparências, preocupando-se o tempo todo com “o que os outros vão pensar”. E a pobre menina cresceu... amada pelo pai – que não sabia como mostrar tal amor – e desprezada pela mãe – que nunca conseguiu disfarçar como ela a incomodava com seus constantes apelos por afeto.

Conhecemo-nos no internato, há quase cinco décadas, e me tornei sua amiga e confidente. Dividíamos dores e doces que nossas famílias distantes mandavam. Estudávamos juntas – assim como aprendemos a fumar e a namorar. Nunca mais perdemos contato e fui a fiel depositária de suas tristes memórias. Fiquei sabendo que ela morreu na última terça-feira, em pleno Carnaval.

Minha amiga partiu em busca do afeto materno que não conheceu e do amor declarado de um pai. Foi embora da forma como viveu, em um desencontro de emoções – desta vez, ironicamente, como personagem de uma tragédia envolvendo a ela e a um carro desgovernado, com um Pierrô bêbado na direção. Minha amiga, o avesso de uma Colombina, partiu acompanhada pelo lamento rouco de uma cuíca.

Até quando alcoolizados inconsequentes continuarão ceifando vidas? Sonho com um Carnaval em que Colombinas e Pierrôs se encontrem, antes e depois da folia, e a vida continue, com nossa incessante busca pelo afeto.

Fonte: Amaral, MEC. 2014. Celebrando dezembro, janeiro, fevereiro... Campo Grande, Letra Livre.

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