04 agosto 2018

Todo poder aos núcleos!


Nos últimos dias, o anúncio do ‘acordo de cavalheiros’ entre a cúpula do PT e a do PSB revolveu parte da lama acumulada no fundo do lago do nosso universo político. Boa parte da militância petista (a maior preciosidade do partido) ficou revoltada, sobretudo a de Pernambuco: não querem abrir mão da candidatura de Marília Arraes, previamente aprovada em um encontro interno (outra preciosidade petista), em troca de uma ‘neutralidade’ do PSB nas eleições gerais de outubro. (Em termos imediatos, o PSB retiraria o nome do seu candidato da disputa em Minas Gerais.)

Acordos de cúpula podem até ser vistos como jogos – jogos de soma zero, jogos de soma negativa etc. Todavia, evocar o conceito de jogo nessas horas soa como artifício retórico. Melhor seria falar em luta. E luta depende de armas e exércitos: trabalhadores organizados (em sindicatos, associações de bairro etc.). Em termos organizacionais, a marca distintiva do PT eram os núcleos (algo que nenhum outro partido jamais teve ou quis ter), a partir dos quais as decisões eram (ou deveriam ser) tomadas. Mas os núcleos foram aparelhados ou simplesmente soterrados. (Não fossem as grandes pilastras, representadas aqui pelas entidades sindicais e populares, tipo CUT, MST, MTST etc., a casa toda já teria desmoronado.)

Com as bancadas parlamentares cada vez mais numerosas, os profissionais ganharam força, ocupando os postos-chave dentro do partido ou fazendo com que os seus protegidos os ocupassem. A base se enfraqueceu, o partido se burocratizou. (Vinte ou trinta anos atrás, seria inimaginável que a cúpula do PT fechasse os acordos que fecha hoje, seja pela natureza deles, seja pelo modo antidemocrático como o faz.) Pois bem, com a democracia interna enfraquecida, portas e janelas permaneceram abertas, à mercê de gatunos e gaiatos, sobretudo durante os anos recentes em que o vento mais soprou a favor – o segundo governo Lula (2007-2010), eu diria.

E os gaiatos vieram. Afinal, todo mundo queria entrar no barco que estava mudando (para melhor) a cara do país. Parlamentar velho de guerra trocar de partido, indo para o PT, virou moda. Foi o que fez o ex-senador Delcídio do Amaral. Muitos outros fizeram a mesmíssima coisa. Mero pragmatismo, o idioma corrente da política parlamentar. Resultado: o partido inchou, o barco ficou pesado. Mas o vento continuava soprando a favor, de sorte que foi relativamente fácil chegar até a outra margem do rio. (Cá entre nós, as coisas melhoraram tanto para os miseráveis que, em um dado momento, eu percebi que passar fome e frio estava se tornando uma missão impossível. Em outras palavras, ficou difícil cair e se machucar, pois havia colchão e rede de proteção por toda a parte. Um marco histórico, sem dúvida, mas nada muito difícil ou trabalhoso: bastou mudar a ordem das prioridades. Acabar com a fome não era impossível para Sarney ou FHC; eles tão somente não tinham interesse nisso.)

Não há dúvida de que alianças e acordos são necessários, ainda mais em um sistema partidário tão escandalosamente pulverizado como o nosso. Mas faz tempo que o PT dá sinais de que está sob o comando de alas mais à direita. (Ah, que falta faz um partido de massas de esquerda!) Quanto mais se acentua o viés à direita, menos se valoriza a autonomia e a organização popular; em compensação, mais se pensa em conchavos e acordos de gabinete. Não vou ficar aqui borrifando álcool em ferida exposta. Portanto, resumiria o meu comentário lembrando apenas o desastre que se abateu sobre Minas Gerais nos últimos anos. Estou me referindo aos dois governos de Aécio Neves.

Olhando de fora, eu diria o seguinte: a direção nacional do PT fixou o PSDB/SP como o inimigo número 1. Decidiu então explorar o acirramento das ‘contradições’ entre o PSDB de SP e o de MG. Por um instante, achando que o governador mineiro poderia ser um aliado, passou a poupá-lo. Nesse contexto, candidaturas próprias do partido em Minas Gerais foram abortadas ou boicotadas. O governador, por sua vez, endereçava loas ao governo federal. Minas Gerais era o paraíso. O negócio era centrar fogo no mal maior: o PSDB paulista, com Serra & todas as demais aberrações que por lá vem proliferando...

A política de boa vizinhança com o governador mineiro gerou o monstro que conhecemos: findas as eleições presidenciais de 2014, Aécio Neves, o paladino da justiça e dos bons costumes, passou a bradar contra a vitória da sua adversária. Virou um fantoche útil nas mãos de quem queria instalar a política de saques e destruição que estamos a viver. Estancar e reverter toda essa anarquia exigirá organização política. E isso é um trabalho demorado, anônimo, de formiguinhas.

‘Lula Livre’ continua e continuará unificando a militância, mas, diante dos últimos acontecimentos, as palavras de ordem hoje deveriam ser outras: ‘Todo poder aos núcleos!’ – lamento apenas que, em agosto de 2018, este lema expresse mais um desejo incontido do que uma possibilidade real.

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