02 fevereiro 2019

A peste


1.
Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194... em Orã. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que fugiam um pouco à norma. À primeira vista, Orã é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.

A própria cidade, vamos admitir, é feia. Com o seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras vilas comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas nem de folhas quebradas? Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, ao contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.
[...]

Fonte: Camus, A. 2018 [1947]. A peste, 7ª ed. RJ, BestBolso.

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