Deixa passar o meu povo
Noémia de Sousa
Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimbas chegam até mim
– certos e constantes –
vindos não sei eu donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros de Harlem.
“Let my people go”
– oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo! –,
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim, soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
“Let my people go!”
Nervosamente,
eu sento-me à mesa e escrevo...
Dentro de mim,
deixa passar o meu povo,
“oh let my people go...”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda – minha Irmã!
Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço,
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
– “let my people go,
oh let my people go!”
E enquanto me vierem de Harlem
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insónia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
“Let my people go”,
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!
Fonte (v. 29-30): Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema escrito em 1950, mas publicado em livro em 2001.
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