21 abril 2020

O mundo, o país e a atropelada russa



Resumo. Este artigo ajusta e amplia as projeções que fiz em artigos anteriores envolvendo a pandemia da Covid-19. Reafirmo aqui duas conclusões que divulguei antes. Primeira. Em escala planetária, a taxa de crescimento diário da pandemia segue em trajetória declinante (e.g., entre 5 e 10/4: inferior a 6,5%; 11-16/4: inferior a 5%; e 17-19/4: igual ou inferior a 4%). Segunda. Em escala nacional, o valor dessa taxa está a oscilar em patamares mais elevados. Além disso, apresento e discuto os resultados de uma comparação que fiz entre nove países (sete dos quais integram a lista dos 20 mais afetados pela Covid-19 – ver aqui). Os resultados indicam que Estados Unidos, Reino Unido, Rússia e Brasil são países cujos números ainda estão a escalar rapidamente. A situação da Rússia é particularmente preocupante.

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1. Situando o problema.

Em artigos anteriores, todos publicados neste Jornal GGN, chamei a atenção para alguns padrões numéricos envolvendo a disseminação da Covid-19. Dois artigos tratavam do comportamento da pandemia em escala mundial [1] e dois, do comportamento em escala nacional [2].

Em nenhum desses artigos eu propus um modelo explicativo para a disseminação da Covid-19. O que estou a fazer é tão somente investigar o comportamento de certos parâmetros, notadamente o que estou a chamar de taxa de crescimento no número de casos da Covid-19 – ou, alternativamente, no número de indivíduos infectados com o SARS-CoV-2 [3].

2. Calculando uma taxa de crescimento.

Estou acompanhando as estatísticas da Covid-19 por meio de dois painéis, um da Universidade Johns Hopkins e o outro do sítio eletrônico Worldometer [4]. Embora os resultados reportados aqui sejam baseados nos totais diários obtidos neste último, as conclusões da minha análise seriam essencialmente as mesmas, caso eu tivesse usado os dados do primeiro.

Para comparar a disseminação da Covid-19 entre diferentes países, eu calculei uma taxa média de crescimento no número de casos em cada país. Os nove países escolhidos foram os seguintes (entre parêntesis, o efetivo populacional): Bélgica (11,5 milhões de habitantes), Brasil (211 milhões), Coreia do Sul (51,2), Estados Unidos (329,1), Irã (82,9), Países Baixos (17,1), Reino Unido (67,5), Rússia (145,9 mi) e Suécia (10 mi). Somadas, as populações destes países correspondem a uns 12% da população mundial [5].

A taxa média de crescimento (βm) foi definida como βm = [ln Y(f) / Y(i)] / t, onde Y(f) é o número de casos no dia 19/4; Y(i) é o número de casos na véspera em que o país ultrapassou a marca de 1.000 casos; t é o intervalo de tempo (em dias) entre Y(i) e Y(f); e ln indica logaritmo natural [6].

3. Construindo um gráfico.

Os valores de βm assim obtidos foram então colocados em um gráfico (ver a figura que acompanha este artigo), do tipo que comumente é usado quando queremos descobrir o ponto ou a região de estabilização de certos fenômenos [7]. Lembrando que, no caso de epidemias, o propósito desse tipo de análise é encontrar pistas que nos apontem para o fim do problema.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra o crescimento no número de casos da Covid-19 em nove países (eixo vertical, em escala logarítmica), entre 26/2 e 19/4. Com exceção de Coreia do Sul e Suécia, os outros sete (Estados Unidos, Reino Unido, Irã, Bélgica, Rússia, Brasil e Países Baixos) integram hoje a lista dos 20 países mais afetados pela pandemia. Observe como as curvas correspondentes aos Estados Unidos, Reino Unido, Rússia e Brasil escalam mais rapidamente que as dos demais países. Note ainda que, quando as curvas dos outros países começaram a escalar mais rapidamente, a curva correspondente à Coreia do Sul já estava parando de subir e entrando em um platô. (O gráfico mostra o comportamento dos números de cada país a partir de 1.000 casos, não a partir de zero.)

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E o que a figura nos sugere?

Eu diria que, com exceção da curva correspondente à Coreia do Sul, nenhuma das outras dá sinais de que tenha entrado ou esteja prestes a entrar em um platô – i.e., em uma zona de crescimento zero ou quase isso. Ao contrário, quatro curvas ainda estão muito íngremes, indicando que os números de casos nesses países (Estados Unidos, Reino Unido, Rússia e Brasil) seguem a escalar rapidamente. A inclinação da curva correspondente à Rússia chama muito a atenção, indicando que a situação naquele país é particularmente preocupante [8].

4. E se a taxa de crescimento não declinar?

Se uma inspeção visual não for suficiente para convencê-lo das afirmações acima, eu sugiro ao leitor que confira os valores que aparecem na legenda interna da figura – são os valores de βm para cada país, expressos em percentuais.

Para colocar esses percentuais em uma perspectiva mais compreensível, vamos imaginar a seguinte questão: O que aconteceria caso a disseminação da Covid-19 permanecesse no patamar atual durante mais algum tempo?

Pois bem. Vejamos o que aconteceria nos países que hoje têm as taxas mais altas. A um ritmo de crescimento diário de 18,1%, em pouco mais de um mês (32,3 dias) metade da população dos Estados Unidos estaria infectada pelo SARS-CoV-2. No caso do Reino Unido (14,5%), seriam necessários 42 dias para infectar metade da população. No caso da Rússia (17,8%), seriam necessários 45 dias. E, no caso do Brasil (13,1%), pouco mais de dois meses (64 dias).

5. Distanciamento é a melhor arma contra a pandemia, não a inércia.

Não há dúvidas de que as estatísticas a respeito da pandemia da Covid-19 devem ser vistas com cautela. E há mais de uma razão para ser cauteloso. Uma delas: autoridades de diferentes países (ou mesmo de diferentes regiões de um mesmo país!) nem sempre adotam o mesmo critério para calcular as mortes causadas pela Covid-19. Outro problema seria o seguinte: algumas autoridades, em diferentes níveis de governo (federal, estadual, municipal), podem deliberadamente omitir ou manipular os dados. (E eu desconfio que isto já esteja a ocorrer com os dados brasileiros.)

Apesar das restrições, sou de opinião que as oscilações para baixo na taxa de crescimento sugerem que a luta contra a pandemia (e.g., adotando o distanciamento social) está sendo uma luta vitoriosa. O distanciamento social (a rigor, trata-se de distanciamento espacial) tem dado certo em todos os países em que foi adotado.

E o contrário também é verdadeiro: quem evitou ou protelou a adoção, está hoje a pagar um preço amargo pela sua inércia. Não é por outro motivo que Estados Unidos e Reino Unido estão a produzir números tão elevados. (Por motivo semelhante, Itália e Espanha, para citar apenas dois países, já estiveram a liderar essa vergonhosa ‘corrida maluca’ da qual a figura que acompanha este artigo seria apenas um mero instantâneo de ocasião.)

E o Brasil? Desprovido de uma direção unificada, firme e esclarecida e hoje um verdadeiro pária no cenário internacional, o país corre o risco de afundar ainda mais nessa areia movediça que são as epidemias. Não seria a primeira vez.

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Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.



[3] Em artigos anteriores, esta taxa foi definida como β = ln [Y(t + 1) / Y(t)], onde Y(t + 1) é o número de indivíduos infectados no dia (t + 1), Y(t) é o número de infectados no dia anterior, e ln indica logaritmo natural. Vejamos dois exemplos de como usar as duas versões da fórmula. Primeiro, a versão usada antes. Considere os números de casos registrados em todo o mundo no intervalo entre os dias 29/2 e 5/3: 86.604, 88.585, 90.443, 93.016, 95.314 e 98.425 (ver nota 4). Usando a primeira versão da fórmula, podemos calcular o valor de β para os dias 1-5/3. Para o dia 1/3, o valor seria β = ln (88.585 / 86.604) ≈ ln 1,0229 ≈ 0,0226. Para os outros dias, os valores seriam os seguintes: 0,0208 (= ln 90.443 / 88.585); 0,0280 (= ln 93.016 / 90.443); 0,0244 (= ln 95.314 / 93.016); e 0,0321 (= ln 98.425 / 95.314). Segundo, a versão usada neste artigo. Considere os casos citados acima para os dias 29/2 (86.604) e 5/3 (98.425). E imagine que os outros números fossem desconhecidos. Pois bem. Poderíamos ainda assim estimar uma média para o valor de β durante o intervalo de dias a separar aquelas duas datas (i.e., os cinco dias a separar 29/2 e 5/3). Teríamos então: β = [ln Y(f) / Y(i)] / t = ln (98.425 / 86.604) / 5 ≈ 0,1279 / 5 ≈ 0,0256.

[4] Estou a acompanhar as estatísticas mundiais em dois painéis, ‘Mapping 2019-nCov’ (Johns Hopkins University, EUA) e ‘Worldometer: Coronavirus’ (Dadax, EUA). A computação que estou a fazer leva em conta os dados divulgados no início da madrugada (horário de Brasília).

[5] Dados demográficos extraídos do sítio das Nações Unidas (ver aqui). Em 1/7/2019, ainda de acordo com a ONU, a população mundial era de 7,713 bilhões de indivíduos.

[6] Dois detalhes metodológicos. O valor de Y(i) variou desde um mínimo de 798 (Reino Unido) até um máximo de 994 (Estados Unidos). O valor de t variou desde um mínimo de 24 dias (Rússia) até um máximo de 54 dias (Coreia do Sul).

[7] Processos multiplicativos, como o crescimento do corpo ou a disseminação de epidemias, podem ser descritos por diferentes modelos matemáticos, cada um deles produzindo a sua própria curva característica. Mas curvas semelhantes podem ter nomes diferentes, a depender da disciplina científica. Químicos falam em curvas de saturação (e.g., quantas gramas de NaCl podem ser dissolvidas em 1 L de água destilada?), por exemplo, enquanto biólogos falam em curvas do coletor (e.g., quantos troncos precisam ser contados para se descobrir quantas espécies de árvores crescem em uma floresta?). Sobre padrões de crescimento numérico, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e... dívidas’ (aqui e aqui).

[8] Embora a média dos Estados Unidos ainda seja maior que a da Rússia, uma inspeção visual sugere que o período de crescimento mais acelerado já passou. Em caso de dúvida, faça um teste: divida a curva dos EUA em duas metades (9-30/3 e 31/3-19/4) e observe como a inclinação da primeira metade é visivelmente mais íngreme que a da segunda.

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