19 setembro 2020

Consalvo


Atirado pelas ondas contra a costa,
arrasto o barco dos meus braços pela areia,
corpo erguendo-se da salmoura destas noites
para o diário de bordo que a luz teima
em escrever no papel manilha dos lençóis.

Neles amarrado como a vinha a uma latada
enfrento a luz pastosa de mais um dia, espalhando
com a peneira de uma mão, na cerca para gado
que é o horizonte do meu quarto, memórias daquela
que passeia sobre mim sem destino como o vento.

Um dente canino assoma, uma presa imóvel
e sem vítima, uma vontade de suster no freio
uma montada, o sexo como um pão que não cresce.
Ir no resplendor da sua bandana, cerzindo
as pregas com que faz um seu vestido o ar,

desenhando no chão com um meneio a caligrafia
de dois passos, importuná-la com um bom dia,
uma palavra que resvalasse por todo o seu ser
como um baptismo, ela que, perplexa de tanto amor,
despede gesto com a mão a quem passa

e entra muda pela nave lateral de uma igreja:
meu desejo de ser nela mais do que o gesto
inútil de quem passa, percorre na espiral
de uma concha univalve a minha vida, tornando
com a noite às horas que soam no mesmo lugar.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1992.

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