11 fevereiro 2021

Como os hospedeiros favorecem a disseminação de parasitos virulentos

Felipe A. P. L. Costa [*].

1. Parasitos, infecções e doenças.

Um parasito é um organismo que obtém seus nutrientes de um ou de uns poucos hospedeiros individuais, normalmente provocando algum dano, mas sem levar à morte imediata.

Quando um parasito coloniza um hospedeiro, diz-se que este abriga uma infecção. Se a infecção ocasiona sintomas claramente prejudiciais ao hospedeiro, diz-se que este tem uma doença [1].

Doenças causadas por parasitos são genericamente referidas como parasitoses e os parasitos que provocam tais doenças são genericamente referidos como patógenos.

Cabe notar que o termo patogênico não está sendo usado aqui em alusão a um atributo que seja universal ou invariável. Um organismo que é patogênico para a espécie A, por exemplo, pode não ter o mesmo efeito quando infecta a espécie B. E mais: um mesmo parasito pode ser patogênico em determinadas circunstâncias (e.g., quando o hospedeiro já abriga outros parasitos), mas não em outras.

2. Zoonoses e doenças contagiosas.

Ao menos 1.415 diferentes organismos infecciosos causam ou podem causar doenças em seres humanos [2]. A maioria (61%) dessas parasitoses é de origem zoonótica (i.e., humanos contraem a infecção de algum animal previamente infectado). Entre as novas doenças infecciosas que estão a surgir, o percentual é ainda maior: 75% das doenças emergentes são de origem zoonótica [3].

Zoonoses podem ser disseminadas por vias diretas ou indiretas. No primeiro caso estão as doenças contagiosas e as infecções provocadas pela ingestão do parasito. Diz-se que as doenças contagiosas são de transmissão direta porque indivíduos sadios contraem a infecção ao terem contato (íntimo ou não) com algum indivíduo previamente infectado (doente ou não). (Embora não estejamos a tratar delas aqui, não custa lembrar: as infecções sexualmente transmissíveis, como a gonorreia, a sífilis e a Aids, são igualmente rotuladas de contagiosas.)

No segundo caso, a transmissão do parasito depende da presença de uma terceira espécie, referida como vetor. Não há contágio. O que ocorre é uma triangulação: em decorrência dos seus hábitos de vida, o vetor estabelece uma conexão entre um ou mais hospedeiros infectados (doentes ou não) e um ou mais hospedeiros sadios (coespecíficos ou não). Febre amarela, dengue e doença de Chagas são exemplos de zoonoses cuja disseminação depende da ação de um vetor – dípteros culicíneos, nos dois primeiros casos, e percevejos triatomíneos, no último [4].

3. Covid-19 (a doença) e SARS-CoV-2 (o vírus).

A doença do coronavírus 2019 (Covid-19) pode ser descrita como um tipo bastante agressivo de pneumonia. O agente etiológico é o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), um vírus não envelopado de fita simples de ARN, referido anteriormente como 2019-nCoV ou WHCV.

O SARS-CoV-2 é o sétimo coronavírus conhecido capaz de infectar seres humanos – SARS-CoV, MERSCoV e SARS-CoV-2 podem causar doenças graves, enquanto HKU1, NL63, OC43 e 229E estão associados a sintomas leves [5].

A Covid-19 é uma doença contagiosa e, assim como ocorre com outras viroses respiratórias (e.g., gripe), compartilhar espaços fechados com outros indivíduos representa o maior risco de infecção [6].

4. A interface hospedeiro/parasito.

Parasitos não costumam debilitar seus hospedeiros a ponto de destruí-los. Mas podem causar danos. Fala-se então em virulência do parasito.

Diferentes linhagens de hospedeiros possuem seus próprios sistemas de defesa contra parasitos e outros inimigos naturais. De um modo geral, três linhas de defesa parecem ter evoluído para minimizar os danos de uma infecção [7]: (1) ajustes comportamentais (reduzindo as chances de encontro com o parasito); (2) resistência (limitando a carga de parasitos); ou (3) tolerância (limitando a extensão dos danos causados pela carga de parasitos).

As idas e vindas entre parasitos e hospedeiros ilustram bem a chamada corrida armamentista. Cito, recorrendo ao que escrevi em outro lugar [8]:

“Generalizando, e pensando agora não apenas em uma única comunidade local, mas em comunidades ecológicas de um modo geral, caberia aqui uma derradeira questão: até que ponto as mudanças evolutivas são determinadas por fatores bióticos (como prevê o modelo Rainha Vermelha) ou abióticos (modelo Bobo da Corte)?

“O primeiro modelo – alusão à Rainha Vermelha, personagem do livro Alice através do espelho, de Lewis Carroll – foi proposto pelo biólogo estadunidense Leigh Van Valen (1935-2010). Segundo Van Valen, as interações ecológicas seriam os principais condutores da evolução. É o que vemos quando um novo tipo de defesa surge em uma população de presas, por exemplo. A partir daí, o desenvolvimento de algum tipo de contra-ataque por parte do predador adquire elevado potencial seletivo e passa a ser favorecido.

“Essas corridas armamentistas (do ing. arm races ou evolutionary arm races) não têm uma solução definitiva, pois a evolução de novos tipos de defesa (e ataque) gera repercussões que vão e voltam… Como no livro de Carroll, as linhagens estariam sempre “correndo para permanecer no mesmo lugar” – se conseguem mudar e reagir, o prêmio é a persistência; caso contrário, elas desaparecem.”

5. Sobre a evolução da virulência.

Até a segunda metade do século 20, perdurou a ideia de que a interação entre hospedeiros e parasitos evoluiria para uma relação atenuada, estável e duradoura [9]. Ponto de vista segundo o qual a coevolução entre as linhagens (leia-se: influências evolutivas mútuas entre elas) resultaria em parasitos pouco ou nada virulentos e em hospedeiros mais ou menos saudáveis. Um dos primeiros a articular essas ideias foi o médico e pesquisador estadunidense Theobald Smith (1859-1934), um pioneiro no estudo da evolução da virulência [10].

Mais recentemente, porém, emergiu a hipótese de que a virulência poderia ser adaptativa [11], notadamente se estiver relacionada com algum traço da infecção que favoreça a transmissão do parasito. Vejamos.

Alguns parasitos exploram seus hospedeiros de um modo, digamos, bem econômico – e.g., o parasito consome quantidades mínimas de tecidos do hospedeiro, de sorte que os danos não são extensivos nem severos. Outros parasitos, no entanto, tendem a explorar o hospedeiro de modo mais vigoroso. Os danos são mais severos e a interação tende a ser breve, pois o parasito costuma se propagar precocemente [12].

6. Quando a destruição do hospedeiro já não é um problema.

Com base em achados teóricos e em trabalhos de campo, muitos estudiosos passaram a defender a ideia de que haveria um meio-termo entre virulência e transmissão. A tal ponto e de tal modo que a virulência tenderia a ser inversamente proporcional à duração da infecção [13].

Valores ótimos desse meio-termo – do ponto de vista do parasito – emergiriam a partir do momento em que os benefícios da infecção (e.g., elevação na taxa de transmissão) passassem a crescer mais lentamente que os custos (e.g., elevação na mortalidade do hospedeiro).

De resto, embora os valores exatos variem de acordo com as espécies e as circunstâncias, duas conclusões gerais parecem emergir.

A primeira. Em um contexto de baixa densidade do hospedeiro, linhagens menos virulentas devem se impor sobre as mais virulentas. Por quê? Ora, visto que os contatos são raros e as chances de transmissão, reduzidas, os patógenos que se propagam mais lentamente, sem causar danos extensivos e sem imobilizar o hospedeiro [14], devem ser os mais favorecidos.

A segunda. Quando os contatos são frequentes e as chances de transmissão, elevadas, a vantagem relativa troca de mãos (ver a figura que acompanha este artigo). E a situação toma outro rumo: As linhagens que se propagam mais rápida ou precocemente seriam as mais favorecidas. E estas, a depender da universalidade do meio-termo ente transmissão e virulência, seriam também aquelas cujo comportamento gera mais danos ou danos mais severos. Visto que a destruição de hospedeiros individuais já não mais seria uma barreira contra a disseminação do parasito.

*


FIGURA. Um modelo de como a densidade e o uso de máscaras faciais estariam a afetar a disseminação da Covid-19. Cada esfera representa um indivíduo; as vermelhas representam indivíduos infectados e as azuis, os susceptíveis (sadios que podem contrair a infecção); as grandes representam indivíduos desprovidos de máscaras e as pequenas, os providos de máscaras. Colisões entre as esferas resultam em contágio e, consequentemente, na disseminação do vírus. São mostrados quatro cenários: (a) Baixa densidade e uso generalizado de máscaras; (b) Uso generalizado de máscaras, mas alta densidade; (c) Baixa densidade, mas sem o uso de máscaras. (d) Alta densidade e sem o uso de máscaras. As chances de colisão aumentam (muito) à medida que aumenta a densidade ou o tamanho das esferas. Razão pela qual as chances de contágio são mínimas em a, mas são máximas em d.

*

7. Coda.

O que esperar então da pandemia da Covid-19, senão o seu agravamento?

Afinal, muitos nós, brasileiros, já não estaríamos a abrir mão das máscaras e das medidas de distanciamento espacial [15]?

Ora, ora, ora.

Levando em conta o que já sabemos, abandonar precocemente as medidas de proteção implicaria em um duplo agravamento.

Por um lado, continuaríamos a vivenciar o agravamento demográfico ora em curso (e.g., aumento continuado no número de casos e mortes, como tem sido registrado desde o início de novembro – ver aqui). O desarranjo demográfico, por sua vez, teria implicações evolutivas (e.g., favorecendo a disseminação de linhagens mais virulentas, como teria ocorrido em Manaus e como já estaria a ocorrer no Rio de Janeiro).

E estes dois cenários são igualmente ruins e preocupantes.

*

Notas.

[*] O presente artigo abriga material que deve aparecer no novo livro do autor, A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de conclusão; título provisório; ver amostras anteriores aqui, aqui e aqui). Há uma campanha de comercialização em curso envolvendo os quatro livros anteriores do autor – para detalhes, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Para detalhes e discussões, ver Begon et al. (2007).

[2] Para detalhes, ver Taylor et al. (2001).

[3] Sobre doenças emergentes (em português), ver Garrett (1995).

[4] Sobre culicíneos e triatomíneos, ver Ray (2008); para diferenciar os culicíneos (e.g., Stegomyia, Aedes e Culex) de outros culicídeos (e.g., Anopheles), ver Consoli & Oliveira (1994).

[5] Ver Andersen et al. (2020).

[6] Ver Qian et al. (2020). Os primeiros casos da Covid-19 foram registrados em Wuhan (~11 milhões de habitantes), a capital da província chinesa de Hubei, em dezembro de 2019. A pandemia chegou ao Brasil em fevereiro de 2020 – talvez antes. Entre nós, o primeiro caso foi registrado em 25/2 – ou no dia seguinte (Quarta-feira de Cinzas), segundo o Ministério da Saúde. A primeira morte teria ocorrido em 17/3.

[7] Para detalhes e discussão, ver Medzhitov et al. (2012). Cabe ressaltar que as três estratégias de defesa citadas não são mutuamente excludentes.

[8] Citação extraída e adaptada do livro O que é darwinismo (Costa 2019). Alternativamente, ver o artigo ‘Rainha Vermelha ou Bobo da Corte?’.

[9] Há uma rica literatura sobre a evolução da virulência – e.g., Frank (1996), Day (2001) e Alizon & Michalakis (2015); em português, ver Giorgio (1995) e Freeman & Herron (2009).

[10] Sobre a vida e a obra de Smith, ver Méthot (2012).

[11] Sobre o significado e o alcance da evolução adaptativa, ver Costa (2019).

[12] Para detalhes e discussão, ver Frank (1996).

[13] Sobre o uso do conceito de meio-termo (ing. trade-offs) no âmbito da biologia evolutiva, ver Costa (2019); sobre a relação entre virulência e transmissão, ver Frank (1996), Day (2001) e Alizon & Michalakis (2015).

[14] Para uma discussão detalhada, ver Ewald (1988).

[15] Alguns brasileiros nunca adotaram e muitos dos que adotaram estão agora a afrouxar ou a abandonar as medidas. E estes últimos parecem agir com base na ideia de que a “vacina chegou”. Não é verdade. A rigor, a vacina ainda vai demorar a chegar – arrisco dizer que o tempo médio de espera dos que serão vacinados não deverá ficar abaixo de seis meses.

*

Referência citadas.

+ Alizon, S & Michalakis, Y. 2015. Adaptive virulence evolution: the good old fitness-based approach. Trends in Ecology and Evolution 30: 248-254.
+ Andersen, KG & mais 4. 2020. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nature Medicine 26: 450-452.
+ Begon, M; Townsend, CR & Harper, JL. 2007. Ecologia, 4ª ed. Porto Alegre, Artmed.
+ Consoli, RAGB & Oliveira, RL. 1994. Principais mosquitos de importância sanitária no Brasil. RJ, Fiocruz.
+ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.
+ Day, T. 2001. Parasite transmission modes and the evolution of virulence. Evolution 55: 2389-2400.
+ Ewald, PA. 1988. Cultural vectors, virulence, and the emergence of evolutionary epidemiology. Oxford Surveys in Evolutionary Biology 5: 215-245.
+ Frank, SA. 1996. Models of parasite virulence. Quarterly Review of Biology 71: 37-78.
+ Freeman, S & Herron, JC. 2009. Análise evolutiva. 4ª ed. Porto Alegre, Artmed.
+ Garrett, L. 1995. A próxima peste. RJ, Nova Fronteira.
+ Giorgio, S. 1995. Moderna visão da evolução da virulência. Revista de Saúde Pública 29: 398-402.
+ Medzhitov, R; Schneider, DS & Soares, MP. 2012. Disease tolerance as a defense strategy. Science 335: 936-941.
+ Méthot, PO. 2012. Why do parasites harm their host? On the origin and legacy of Theobald Smith’s ‘Law of declining virulence’ – 1900-1980. History and Philosophy of the Life Sciences 34:561-601.
+ Qian, H & mais 5. 2020. Indoor transmission of SARS-CoV-2. doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.04.20053058.
+ Rey. L. 2008. Parasitologia, 4ª ed. RJ, Guanabara Koogan.
+ Taylor LH; Latham SM & Woolhouse MEJ. 2001. Risk factors for human disease emergence. Philosophical Transactions of the Royal Society of London B 356: 983-989.

* * *

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker