10 fevereiro 2023

Éramos sete – Lembrando Alpina Begossi e a turma de 1981

Felipe A. P. L. Costa [*] [**].

APRESENTAÇÃO. – Na última quarta-feira (8/2), recebi a notícia do falecimento de Alpina Begossi (1958-2023). Foi um susto imenso. E uma grande tristeza. Não sabia que ela estava a lutar contra um câncer – “Ela teve câncer no útero, depois... [alastrou]”, foi o que me relatou uma amiga. Não nos víamos há muitos anos. Às vezes, porém, trocávamos um ‘oi’ pelo correio eletrônico. O mais recente deles, em 23/10/2022. Em resposta a uma mensagem minha, falando do aniversário de 80 anos de Milton Nascimento (ver aqui), Alpina escreveu: “Como vai? Gostei sim! Bela homenagem!! Abraço”.

*

I. O PRIMEIRO ENCONTRO.

A primeira vez que conversei com Alpina Begossi foi durante um encontro de estudantes de graduação em Biologia, no Rio de Janeiro. Isso foi em 1979. (Acho que o encontro ocorreu em uma faculdade particular, mas não lembro exatamente qual.) Eu estava lá como representante da minha universidade (UFJF), ao lado de duas colegas de curso.

Na época, ela e Jader (ver adiante) eram namorados. Acho que os dois ajudaram nos preparativos do evento e estavam lá meio que recepcionando o pessoal que chegava para o encontro. Veio gente de longe.

Por exemplo, um amigo que fiz nesse encontro, e com quem troco figurinhas até hoje, era um dos representantes da Biologia da UFRGS. Marcos (professor recém-aposentado da UFSJ) e eu defendíamos ideias e posições bem parecidas. Mas diferentes, por exemplo, das dos nossos anfitriões cariocas.

Na verdade, durante os poucos anos em que Alpina e eu convivemos mais de perto, discussões políticas e ideológicas (e.g., MDB vs. PT, MR-8 vs. Democracia Socialista, Stalin vs. Trotsky) sempre fizeram parte do cardápio. Sempre foram motivos para uma troca de farpas. Farpas minhas e farpas dela. Quase sempre por pura provocação ou pura palhaçada. Nunca brigamos.

II. ESTUDANDO ECOLOGIA NA UNICAMP.

Nós nos reencontramos no segundo semestre de 1980, quando ela e Jader foram se inscrever para o exame de seleção (mestrado) do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Unicamp (PPG-Ecologia). (Eu já morava em Campinas desde março de 1980 e estava a cursar algumas disciplinas isoladas.)

Um parêntesis. O mestrado em ecologia na Unicamp teve início em 1976. (O doutorado teria início em 1980.) Em 1979, quando me graduei, os estudantes brasileiros que quisessem fazer pós-graduação em ecologia tinham quatro opções: Inpa, UFRGS, UnB e Unicamp [1]. Eu havia trocado correspondências e estava razoavelmente informado a respeito dos quatro programas. Escolhi a Unicamp. Nunca tive dúvidas de que foi uma escolha acertadíssima.

Olhando em retrospecto, posso dizer que alguns dos professores com quem convivi em Campinas fizeram toda a diferença. De resto – e isso talvez tenha sido o mais importante –, ao contrário da apatia que vejo nos estudantes de hoje, havia muita efervescência entre nós, tanto em torno de questões técnicas (metodológicas, conceituais etc.) como em torno de questões filosóficas ou políticas. (Alguns de nós – mas não todos – havíamos participado do movimento estudantil. E isso nos fez muito bem. Aprendemos a falar, discutir e trabalhar em grupo, por exemplo, algo que a maioria dos jovens de hoje parece desconhecer.)

III. A TURMA DE 1981.

O exame de seleção foi no final de 1980. Aprovados, integramos a turma de 1981. (A Unicamp era – e continuou a ser por muitos anos – o melhor lugar para se estudar no país. E não só na área de ecologia [2].)

A turma de 1981 era particularmente inquieta e barulhenta. Mais do que as anteriores, eu diria. Éramos sete (entre parêntesis, a instituição em que cada um ingressaria posteriormente): Alpina (Unicamp), Ana (UFSM), Jader (UnB), Silvia (MCT), Tânia (UFSC), Waldir (Esalq) e o autor destas maltraçadas. (Eu era o caçula. O mais velho, salvo engano, era o Waldir, detentor de outras três comendas: era o único casado, o único que não era biólogo e o único que já era professor universitário.)

Tivemos ainda dois agregados. O querido e saudoso Elias Pacheco Coelho (1950-1987), aluno do doutorado, já então professor da UFRJ e que fez ao menos uma disciplina básica conosco; e a querida Dulce (UnB), da Biologia Vegetal e que foi fazer o curso de Manaus com a gente, no inverno de 1981 [3].

IV. A CONEXÃO UFRJ-UNICAMP.

Havia em nossa turma um claro predomínio de estudantes oriundos da UFRJ – Jader, Silvia e Tânia, além da própria Alpina. Todos cariocas, todos graduados no UFRJ. Não era um erro de amostragem nem era uma distorção iniciada em 1981. A rigor, desde o início do PPG-Ecologia, havia uma fartura de estudantes cariocas, quase todos graduados no Fundão. Não foi difícil de entender o motivo.

Embora a UFRJ já tivesse tido uma primeira experiência com pós-graduação nessa área, na época o programa estava desativado. O que de fato havia ali era um bom bacharelado em ecologia, algo ainda relativamente incomum [4]. Razão pela qual meus colegas cariocas haviam lido e estudado coisas que eu até então desconhecia por completo. (Sem contar o fato de que o ensino de ecologia na UFJF era uma nulidade – e assim continuou a ser por muitos anos.) Neste sentido, o que li e estudei em Campinas ao longo de 1980 fez toda a diferença.

V. DE VAQUINHAS A PESCADORES.

No mestrado, Alpina estudou e pesquisou o ‘drama da vida’ de alguns insetos fitófagos conhecidos popularmente como vaquinhas [5]. O grupo e o assunto escolhidos para a tese (i.e., hábitos alimentares dos insetos e o aposematismo que eles exibem), arrisco dizer, foram frutos de um arranjo momentâneo e provisório.

Não há dúvidas de que ela se envolveu com os crisomelídeos, com a ecologia das interações inseto-planta e com a teoria do mimetismo (entre outras coisas), mas era mais ou menos óbvio que não era isso o que ela planejava fazer ao longo de sua vida como pesquisadora científica.

A rigor, como outros biólogos que conheci naquela época, Alpina pretendia combinar a formação acadêmica com o ativismo social e a militância política. Veja, por exemplo, o que ela escreveu como uma dedicatória em sua tese de mestrado (1984): “A todos os que conseguiram aliar seu trabalho à luta pela evolução das relações humanas, em direção a uma sociedade sem diferenças sociais”.

No doutorado, decidiu então trabalhar com ecologia humana – mais especificamente, a economia e a ecologia da pesca e dos pescadores. Tornou-se uma referência na área, da qual nunca arredou pé [6].

VI. CODA.

Alpina foi casada com o físico Luiz Eduardo Oliveira (Unicamp). O casal teve duas filhas. Além das filhas, ela deixou dois netos.

*

NOTAS.

[*] Sou grato a SGE, amiga de longa data, pela cuidadosa leitura de uma versão inicial deste artigo. Erros e omissões que o leitor venha a observar são de minha inteira responsabilidade, evidentemente.

[**] Para informações sobre como adquirir os livros do autor – Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª ed., 2014), Poesia contra a guerra (2015), O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017) e O que é darwinismo (2019) –, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume em particular ou para mais detalhes, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Havia um curso afim na UFSCar. A rigor, porém, não era bem um curso de ecologia, era um programa de pós-graduação em limnologia. (Naquela época, eu classificaria o curso da UFSCar como ‘biologia de barragens’.)

[2] O curso de pós-graduação em Biologia Vegetal, por exemplo, oferecia disciplinas na área de sistemática que eram tidas como as melhores do mundo. Em tempo: Ironicamente, o colega que me alertou para o falecimento da Alpina, na mesma postagem me alertou também para o falecimento de Peter Edward Gibbs (1938-2023), botânico britânico que trabalhou na Unicamp e, mesmo após a sua saída da instituição, ainda manteve contato com colegas e alunos durante muitos anos.

[3] 1981 foi o ano da última edição de um curso de campo (Ecologia de Campo I ou III) que era ministrado em consórcio com o Inpa. Os alunos da Unicamp tinham de fazer dois cursos de campo, o de Manaus (no inverno), e o da Campininha (no verão). Não vou a Campinas desde 2005. A julgar pelas notícias que chegam até mim, no entanto, as coisas por lá mudaram muito. Nem sempre para melhor, infelizmente. Assim como ocorreu em outros programas e em outras universidades brasileiras, o PPG-Ecologia não passou incólume à degradação acadêmica que há mais de duas décadas vem sendo imposta pelos órgãos financiadores – estou a me referir aqui principalmente à política suicida do ‘Quanto mais rápido o aluno concluir o mestrado [doutorado], melhor’. Assim é que os cursos de campo – disciplinas intensivas com quatro semanas de duração –, por exemplo, se converteram em uma espécie de ‘passeio no parque’ de sete dias. Ou nem isso. Formalmente, os cursos de campo eram disciplinas obrigatórias (no mestrado, Ecologia de Campo I e II; no doutorado, Ecologia de Campo III e IV), mas hoje não é mais assim. É preocupante. Não há pressa nem falta de verba que justifique tamanho enxugamento e tamanha pobreza curricular. Não estranha observar o quão frágil é o nível médio dos novos mestres e doutores. Frágil e em declínio.

[4] O corpo docente da UFRJ contava com professores notáveis, como o saudoso Johann Becker (1932-2004), pioneiro no ensino de ecologia evolutiva entre nós, assim como Ricardo Iglesias Rios
 e John Du Val Hay – apenas para citar três dos que eu conheci pessoalmente. Não soa estranho, portanto, constatar que a UFRJ era – e continuou a ser por muitos anos ainda – uma exportadora de talentos para a Unicamp. Assim de pronto, sem pesquisar, consigo me lembrar de ao menos outros sete colegas cariocas que entraram em alguma das cinco turmas anteriores (1976-1980), a saber: Débora, Flávio, Fred, Paulo, Ricardo, Sérgio e Thomas. Além do saudoso Alfredo Luiz da Rocha Barreto (1954-2010), embora este último não tenha se graduado no Fundão.

[5] Vaquinhas são besouros crisomelídeos agrupados hoje em uma única tribo (Chrysomelidae: Galerucinae: Alticini). Na época, o nível do agrupamento era o de subfamília (Alticinae). Para ler ou capturar a tese, ver aqui.
Dois comentários adicionais. (i) Alguns autores preferem distinguir entre dissertação (mestrado) e tese (doutorado). No contexto deste artigo, adoto apenas ‘tese’ e por um motivo bem simples: Muitas das teses de mestrado defendidas por colegas meus, sobretudo ao longo da década de 1980, equivaleriam hoje a duas ou três teses de doutorado (em termos de abrangência conceitual, esforço de amostragem, revisão da literatura, consistência textual etc.). Não vou aqui entrar em detalhes, mas, trabalhando como revisor crítico, eu já li teses (inclusive de doutorado) que não deveriam ter sido aceitas (dentro e fora da biologia) sequer como trabalho de conclusão de curso. (ii) Sobre aposematismo, ver ainda O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (Edição do Autor, 2017), de F. A P. L. Costa.

[6] Ver, por exemplo, Ecologia de pescadores da mata atlântica e da Amazônia (RiMa, 2013, 2ª edição), livro que foi organizado por ela. Uma entrevista de 2021 pode ser lida aqui; uma fala de 2022 pode ser vista e ouvida aqui.

* * *

5 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Meus sentimentos. 😪

10/2/23 22:20  
Blogger Desi disse...

Linda homenagem para nossa querida colega. Eu, mesmo sendo da próxima turma, tinha muito contato e admiração por ela.

10/2/23 22:31  
Anonymous Anônimo disse...

Parabéns, pelo texto! Além de uma linda homenagem a ilustre pesquisadora e sua contribuição a ciência brasileira, um resgate da evolução dos programas de pós-graduação (PPG) em Ecologia. Sua opinião crítica sobre a postura e formação de mestres e doutores, comparando as décadas de 80 e a atual na Area, merece reflexão e uma discussão aprofundada por todos nós envolvidos com a PPGs.

11/2/23 05:24  
Blogger Carlos Fernando S. Andrade disse...

Homenagem sensível e justa essa do prof. Felipe à amiga e colega profa. Alpina Begossi! (Entre as 100 mil cientistas mais influentes do mundo - PLOS Biology. E uma das 600 mais influentes no Brasil)
Fomos contemporâneos no PPG-Ecologia Unicamp e bem depois atuamos juntos quando Profa. Alpina trouxe entre 2009 e 2014 seus projetos financiados pela FAPESP e pelo Canada Research Chair (Universidade de Manitoba) para o LEPAC (Laboratório de Extensão da Unicamp em Paraty, RJ), que eu coordenava. Manejo da pesca, segurança alimentar, Etnoecologia, comunidades pesqueiras... Sim, profa. Alpina colocava a ciência a serviço da sociedade e isso foi notável em Paraty. Simpática, alegre, praticante de surf e tocadora de guitarra. Tínhamos vários assuntos e pessoas estimadas em comum. Meu abraço especial a Eduardo 'Duda' seu companheiro.

11/2/23 09:28  
Anonymous Anônimo disse...

Felipe , obrigado por compartilhar essa história conosco! André Flávio

12/2/23 08:58  

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