18 março 2023

Milhões, bilhões, trilhões: Quantas gotas de chuva enchem uma caixa d’água?

Felipe A P L Costa [*].

1. – ESPÉCIES, POPULAÇÕES, INDIVÍDUOS.

Ao longo dos últimos 250 anos, cerca de 1,45 milhão de espécies de seres vivos foram formalmente descritas e nomeadas [1]. Embora seja por si só impressionante, esse número não representa mais do que uma pequena parcela da diversidade global da Terra, que deve abrigar entre 5 e 50 milhões de espécies viventes de plantas, animais, fungos e micro-organismos [2].

Cada uma dessas espécies, notadamente no caso dos eucariotos [3], abarca um número variável de populações, cada qual por sua vez constituída de um número variável de indivíduos.

Para os propósitos deste artigo, vamos admitir que o planeta abrigue hoje um total de 30 milhões (= 3 × 10
7) de espécies de eucariotos (algas, protozoários, animais, plantas e fungos, sem computar bactérias, arqueias e vírus). Vamos imaginar ainda que cada uma dessas espécies abrigue uma constelação de 100 (= 102) populações, cada qual formada de 1.000 (= 103indivíduos.

Feitas as contas, teríamos então os seguintes totais:

(a) 30 milhões de espécies (i.e., 30.000.000 ou 3 × 
107);

(b) 3 bilhões de populações (i.e., 3.000.000.000 ou 3 × 
109, que vem de 3 × 107 × 102; e

(c) 3 trilhões de indivíduos (i.e., 3.000.000.000.000 ou 3 × 
1012, que vem de 3 × 109 × 103).

Em resumo, o número de espécies estaria na casa dos milhões; o de populações, na dos bilhões; e o de indivíduos, na dos trilhões.

2. – CONFUSÕES ENVOLVENDO SISTEMAS MÉTRICOS.

Muita gente (incluindo profissionais da imprensa) se atrapalha com as expressões milhões, bilhões e trilhões. O problema é grave, mas está longe de ser uma exclusividade brasileira. Nas palavras de Sagan (1998, p. 14):

“A confusão entre milhões, bilhões e trilhões ainda é endêmica na vida diária, e rara é a semana que se passa sem uma dessas trapalhadas no noticiário de TV (em geral, uma confusão entre milhões e bilhões). Assim, eu talvez possa ser desculpado por perder algum tempo distinguindo: 1 milhão é mil milhares, ou o número 1 seguido de seis zeros; 1 bilhão é mil milhões, ou o número 1 seguido de nove zeros; e 1 trilhão é mil bilhões (ou, equivalentemente, 1 milhão de milhões), que é o número 1 seguido de doze zeros.”

Além da questão de nomenclatura – usar milhões quando o certo seria bilhões, ou vice-versa –, vale ressaltar que outro tipo de problema muito comum entre nós são os erros e mal-entendidos que surgem na hora de se converter unidades de grandeza. Por exemplo, converter metros quadrados (m2) em hectares (ha) ou hectares em quilômetros quadrados (km2).

O problema, mais uma vez, não é uma exclusividade brasileira. Eis o comentário de Pimm (2007, p. 7; negritos meus):

“Na Inglaterra, quase todas as folhas caíram nos três meses do outono. Na Austrália, caíram folhas todos os meses, embora mais nos meses secos do que nos meses úmidos. Mesmo assim, as quantidades foram muito semelhantes: cerca de um quilograma de folhas secas e pequenos galhos por metro quadrado, ao longo do ano. Para muitos leitores, a frase anterior parecerá perfeitamente trivial, mas não para a minha esposa, Julia. Ela é, em suas próprias palavras, metricamente incompetente. Para ela, como para a maioria dos [estadunidenses], britânicos acima de certa idade e alguns engenheiros da NASA que enviam sondas à Marte, a frase deveria ser lida como cerca de 2 libras... por jarda quadrada.”

O autor está a se referir às dificuldades que cercam a conversão de unidades de sistemas métricos diferentes. No caso em questão, a conversão de duas unidades de massa (quilograma vs. libra) e de área (metro quadrado vs. jarda quadrada).

3. – ESCALAS MICROSCÓPICAS.

Por fim, vale a pena tecer algumas considerações a respeito de escalas microscópicas. Vejamos.

O olho humano normal consegue distinguir dois pontos separados por uma distância mínima de até um décimo de milímetro (0,1 mm ou 
10-1 mm). Chamamos a isso de poder de resolução. Como a maioria das células tem dimensões bem inferiores a 0,1 mm (= 100 µm, lê-se ‘cem micrômetros’), elas são invisíveis a olho nu.

Logo se entende por que a descoberta das células – e do mundo dos micro-organismos – ocorreu paralelamente à confecção de instrumentos (lentes, lupas, microscópios etc.) que ampliaram em muito o poder de resolução do olho humano.

O poder de resolução de um microscópio óptico, por exemplo, chega a 0,2 μm (i.e., dois décimos de micrômetro). O microscópio eletrônico, por sua vez, consegue distinguir objetos que estão separadas por até 0,5 nm (i.e., cinco décimos de nanômetro).

3.1. – Eucariotos vs. procariotos.

Vejamos agora um exemplo envolvendo seres vivos. Lembrando apenas que as unidades mais usadas para medir células e organelas celulares são o micrômetro (μm) e o nanômetro (nm).

Células ditas procarióticas (1-10 μm) são em média 10 vezes menores em diâmetro que as eucarióticas (10-100 μm), embora haja exceções [4]. Bactérias do gênero Thiomargarita, por exemplo, são gigantescas, podendo chegar aos 700 μm (ou mais) de diâmetro. Em sentido oposto, há eucariotos unicelulares diminutos. Certas algas marinhas, por exemplo, não têm mais do que 1-2 μm de diâmetro. Como regra geral, podemos dizer que micro-organismos e células do corpo de organismos multicelulares têm entre 1 e 100 μm de diâmetro.

Um micrômetro (1 μm), como já foi dito, equivale à milésima parte de um milímetro. O que significa dizer que 1 mm = 1.000 μm, de onde obtemos que 1 μm = 1 / 1.000 mm = 0,001 mm.

Um nanômetro (1 nm), por sua vez, equivale à milésima parte de um micrômetro, o que significa dizer que um nanômetro equivale à milionésima parte de um milímetro. Assim: 1 mm = 1.000 μm = 1.000.000 nm, de onde obtemos 1 nm = 0,001 μm = 0,000001 mm.

De resto, outra unidade de medida que é ainda usada no contexto de objetos menores que as organelas celulares (e.g., moléculas e átomos) é o ångström [5], sendo 1 Å = 0,1 nm. (Em palavras, 1 Å corresponde à décima milionésima parte do milímetro – i.e., para alcançarmos a escala de 1 Å teríamos de fatiar um único milímetro em 10 milhões de partes iguais.)

4. – CODA.

Para encerrar esta nossa conversa envolvendo milhões, bilhões e trilhões, eu vou deixar aqui uma provocação. Ou melhor, três. (Estou a pensar tão somente naquele leitor que é avesso a qualquer terminologia quantitativa ou, parafraseando Pimm, naquele leitor que se considera ‘matematicamente incompetente’.)

Aí vão as questões. (Responda escolhendo uma das quatro alternativas [6].)

(1) Em 1970, a população brasileira estava na casa dos 90 milhões de habitantes; em 2022, a julgar pelo censo ainda em curso, chegou aos 210 milhões (talvez um pouco mais). Assim, transcorridos 52 anos, o crescimento da população brasileira foi da ordem de:

(a) 1,2 × 102 indivíduos;
(b) 1,2 × 105 indivíduos;
(c) 1,2 × 108 indivíduos; ou
(d) 1,2 × 1011 indivíduos.

(2) Em 2022, a população humana na Terra chegou aos 8 bilhões de indivíduos. O que equivaleria a

(a) 8 × 103 indivíduos;
(b) 8 × 106 indivíduos;
(c) 8 × 109 indivíduos; ou
(d) 8 × 1012 indivíduos.

(3) Para encher uma caixa d’água de 1.000 litros são necessárias 1 × 
109 gotas de chuva, cada uma delas com 1 mm3 de volume. Significa dizer que são necessárias:

(a) 1 milhão de gotas;
(b) 10 milhões de gotas;
(c) 1 bilhão de gotas; ou
(d) 10 bilhões de gotas.

*

NOTAS.

[*] Versão anterior deste artigo (envolvendo então apenas os itens 1 e 2) foi publicada na edição 356 (22/11/2005) do Observatório da Imprensa. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Uma sugestão e um comentário. A sugestão: Para uma introdução ao estudo da classificação biológica, ver Costa et al. (2011). O comentário: Para indicarmos uma quantidade exata de seres ou objetos, ou para indicarmos a posição de cada um deles em uma série, usamos uma classe especial de palavras: os numerais. Não permita que os robôs (muitos deles semianalfabetos) que estão por trás de certos corretores automáticos (e.g., o do Word), induza você a propagar erros. Alguns numerais (mas não todos) variam em gênero ou número. Entre estes últimos (milhão, bilhão etc.), porém, a palavra só vai para o plural quando a quantidade em questão é igual ou superior a 2. Sobre o uso correto dos numerais, ver, e.g., Cunha (1976).

[2] Para ter uma ideia dos problemas envolvidos com a produção de estimativas para o tamanho da biodiversidade global, ver Mora et al. (2011) e Larsen et al. (2017); em port., Erwin (1997).

[3] Quando falamos em eucariotos estamos a nos referir a um conjunto bastante heterogêneo de seres vivos, incluindo algas, protozoários, animais, plantas e fungos. O que os une é tão somente o fato de que as células do corpo deles são nucleadas. Ficam de fora os procariotos (bactérias e arqueias) e os vírus. Para um mapa ilustrado e razoavelmente detalhado de todos esses grupos, ver, e.g., Margulis & Schwartz (2001).

[4] 10 vezes menor em diâmetro implica em 1.000 (= 103) vezes menor em volume, lembrando que o volume de qualquer célula é uma função cúbica de suas dimensões lineares.

[5] O termo alude ao físico sueco Anders Jonas Ångström (1814-1874).

[6] Estou disponibilizando em outro lugar (ver aqui) uma pequena lista (em formato PDF) com comentários e respostas para estas e algumas outras questões afins.

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

+ COSTA, FAPL & mais 2. 2011. Classificação biológica: desafios na história da Biologia. In: Paleari, LM & mais 3, orgs. Experimentando ciência: Teoria e prática para o ensino da Biologia. SP, Cultura Acadêmica & Unesp.
+ CUNHA, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª ed. BH, Bernardo Álvares.
+ ERWIN, TL. 1997 [1988]. A copa da floresta tropical: O coração da diversidade biótica. In: EO Wilson, ed. Biodiversidade. RJ, Nova Fronteira.
+ LARSEN, BB & mais 3. 2017. Inordinate fondness multiplied and redistributed: The number of species on Earth and the new pie of life. Quarterly Review of Biology 92: 229-65.
+ MARGULIS, L & SCHWARTZ, KV. 2001 [1997]. Cinco reinos, 3ª ed. RJ, Guanabara Koogan.
+ MORA, C & mais 4. 2011. How many species are there on Earth and in the ocean? PLoS Biology 9:e1001127.

* * *

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker