23 março 2024

Humano, demasiado humano


Felipe A. P. L. Costa [*]

Após o surgimento do ramo dos hominíneos (incluindo aí gêneros já desaparecidos, como Ardipithecus, Australopithecus e Paranthropus) [1], a história evolutiva que levaria ao surgimento dos seres humanos se caracterizou pela retenção e desenvolvimento de alguns traços bem conhecidos. Quatro deles são listados a seguir.

1. Expansão do cérebro.

Com um volume médio de 1.350 cm^3 (variando entre 1.000 e 2.000 cm^3) (ver a figura que acompanha este artigo), o cérebro humano é maior que o de qualquer outro primata vivente (tanto em termos relativos como absolutos). Quando o gênero Homo se estabeleceu como linhagem distinta, o tamanho médio do cérebro dos seus integrantes já era maior que o de qualquer outro hominíneo então existente. Nas palavras de Lewin (1999, p. 292):

A capacidade cerebral dos primeiros Homo era maior do que a dos australopitecíneos, uma mudança que produziu vários caracteres associados. Por exemplo, as áreas temporais nos australopitecíneos são marcadamente estreitas (melhor observadas a partir de uma visão superior), formando o que é conhecido como a constrição pós-orbital. Nos primeiros Homo, a constrição é muito reduzida por causa do cérebro expandido. Além disso, a face de um australopitecíneo é larga em relação ao tamanho de sua caixa craniana, uma proporção que é reduzida em Homo, de cérebro maior. O próprio osso do crânio é mais espesso nos Homo do que nos Australopithecus.

2. Mandíbulas e dentes.

Em relação às linhagens ancestrais, caberia dizer que as mandíbulas recuaram e o equipamento dentário mudou; os caninos, em especial, diminuíram de tamanho [2].

Eis a caracterização de Pilbeam (1977, p. 68-9):

Talvez tão significativo como a redução no tamanho é o fato de que os caninos hominídeos apresentam uma forma alterada. Em lugar de serem dentes cônicos e afiados ou em forma de lâmina, apresentam forma de cinzel e lembram os incisivos. Os próprios incisivos são também pequenos em relação aos pré-molares e molares, e têm coroas orientadas verticalmente. Geralmente, – pelo menos nas populações humanas não modernas – as superfícies de corte dos caninos superiores e inferiores e os incisivos encontram-se borda-sobre-borda na oclusão. Incisivos, caninos e pré-molares formam uma série contínua, não havendo diastemas (espaços interdentais) como em outros primatas (por exemplo, entre incisivos superiores e caninos, ou caninos inferiores e primeiros pré-molares).
  Os pré-molares e molares apresentam contorno bastante arredondado e suas superfícies oclusivas têm cúspides rasas e sem corte. Estas superfícies são cobertas com espesso esmalte – uma adaptação para reduzir o desgaste em um animal com longa duração de vida e (pelo menos originalmente) que se alimenta de alimentos duros.

3. Bipedia.

Nenhum outro primata vivente é um bípede tão habitual como nós. De acordo com Lewin (1999, p. 215-7):

Apesar do Homo sapiens não ser o único primata a andar sobre dois pés – por exemplo, chimpanzés e gibões frequentemente utilizam esta forma de postura em certas circunstâncias ambientais – nenhum outro primata o faz tão habitualmente ou [o faz] com passos tão longos. [...]
  A bipedia com passos longos presente nos seres humanos envolve uma sequência de uma série de ações – a fase da ginga e a fase postural – na qual uma perna alterna-se com a outra. A perna na fase da ginga é impulsionada utilizando-se a força do dedão do pé; ela se desloca sob o corpo em uma posição ligeiramente flexionada, e, finalmente, estende-se quando o pé novamente entra em contato com o chão, primeiro com o calcanhar (o toque do calcanhar). Uma vez que ocorreu o toque do calcanhar, a perna permanece estendida e fornece suporte para o corpo – a fase postural – enquanto a outra perna entra na fase da ginga, com o corpo continuando a mover-se para frente.

O estabelecimento da bipedia como estilo de vida foi acompanhado de diversas modificações, tanto estruturais (forma e função) como comportamentais. O comprimento dos membros anteriores, por exemplo, diminuiu e a mão passou a ser usada quase que exclusivamente na manipulação de objetos.

Eis a caracterização de Napier (1983, p. 116; grafia original):

A opinião mais difundida a respeito da divisão dos símios africanos e dos primeiros hominóides é que esse evento crítico teve lugar antes de se terem desenvolvido as características especializadas de ‘braquiação’ da mão simiesca. Russel Tuttle [3], que sustenta esse ponto de vista, acredita que, antes de se tornarem bípedes, os hominídeos ancestrais usaram as mãos de maneira plantígrada, como os macacos, e não na postura de locomoção sobre os nós dos dedos que caracteriza os grandes símios africanos modernos. Ele também acredita que a mão hominídea primitiva tinha as proporções gerais da do homem moderno, e não as da mão alongada, de dedos longos e polegar curto, dos grandes símios. Tuttle propõe que a seleção para um tipo especificamente moderno de mão humana ocorreu com a fabricação de instrumentos. Concordo quase por completo com esse ponto de vista.

Na linhagem humana mais recente, a capacidade de se locomover por meio da suspensão do corpo (braquiação) – por meio da qual, por exemplo, chimpanzés e orangotangos saltam de galho em galho ou de árvore em árvore – assumiu um papel cada vez mais secundário; sendo, então, abandonada [4]. Por sua vez, a importância das mãos em outras atividades ganhou contornos cada vez mais decisivos. A tal ponto que a área do córtex motor reservada para o controle das mãos se expandiu muito, em especial no caso do polegar.

4. Comportamento social e cultura simbólica.

Muitos outros animais possuem cultura ou compartilham de uma herança cultural comum. Nenhum deles, porém, parece possuir uma cultura simbólica tão sofisticada como a nossa.

Ocorre que, ao contrário do que se passa com os três itens anteriores, testar hipóteses a respeito do comportamento individual ou de hábitos culturais é uma empreitada menos assertiva, visto que está em boa medida ancorada (1) no exame de evidências indiretas (e.g., artefatos, restos de comida e fezes petrificadas); ou (2) no estudo comparativo de grupos viventes (e.g., grupos humanos mais ou menos isolados ou grupos de outros primatas).

Vamos tornar a falar dos itens 1 e 4 mais adiante, ainda neste capítulo.

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Notas.

[*] Este artigo foi extraído e adaptado de um capítulo do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Versão completa do artigo (em PDF) pode ser capturada aqui.

[1] A definição de Homininae adotada aqui coincide com a de Lewin (1999); para uma lista das espécies conhecidas, v. Cela-Conde & Ayala (2003).

[2] Entre os mamíferos, a fórmula dentária é usada na caracterização de ordens e famílias. A fórmula dos primatas é (1-2)/(1-3) I, (0-1)/(0-1) C, (1-3)/(0-3) PM, 3/3 M; a dos hominídeos, 2/2 I, 1/1 C, 2/2 PM, 3/3 M. (I = incisivo; C = canino; PM = pré-molar; e M = molar.)

[3] Alusão ao antropólogo inglês Russel (Howard) Tuttle (nascido em 1939).

[4] Sobre braquiação, v. Hildebrand & Goslow (2006); sobre as mãos, especificamente, Napier (1983).

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Referências citadas.

+ Cela-Conde, C & Ayala, FA. 2003. Genera of the human lineage. Proceedings of the National Academy of Sciences 100: 7684-9.
+ Hildebrand, M & Goslow, G. 2006 [2004]. Análise da estrutura dos vertebrados, 2ª ed. SP, Atheneu.
+ Lewin, R. 1999 [1998]. Evolução humana. SP, Atheneu.
+ Napier, J. 1983 [1980]. A mão do homem: Anatomia, função, evolução. RJ, Zahar.
+ Pilbeam, D. 1977 [1972]. A ascendência do homem. SP, Melhoramentos & Edusp.

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