O último reduto
Luís Miguel Nava
Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado, onde parece alimentar-se um mecanismo que de dentro de nós próprios se apostasse em escorraçar-nos, repelir-nos, algo cuja natureza nos é estranha e que não raro ocupa toda a nossa identidade. Vamos assim sendo confinados a um domínio que se exaure, a um território em progressiva retracção, que em breve se limita às mãos, aos lábios, ao rebordo de uma ferida, sendo na pele que inevitavelmente concentramos então tudo o que nos resta. Na pele é um modo de dizer: na roupa, nos adornos. São os brincos, as pulseiras e os anéis o que por vezes nos sustém, o que garante a nossa integridade, o último reduto contra esse mecanismo que de dentro de nós próprios nos rechaça e de que a pele, a plataforma a que, alarmados, então nos agarramos, é igualmente o carburante, numa duplicidade idêntica à de um livro cujas páginas entrassem e saíssem do espírito de quem o escrevesse.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1989.
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home