O poeta trabalha
Antonio Roberval Miketen
Sobre tons surrealistas,
a madrugada deserta
desenterra suas desventuras:
no sono profundo, trabalha o poeta.
Meu relógio amolece e tomba no poço da noite.
Um velho leva a navalha
para a frente do espelho:
no fundo da escuridão,
se rompem as comportas de uma represa.
Enquanto as naus naufragam nas garrafas,
os bêbados fumam os vaga-lumes.
Tropeço na maciez de um gato morto
e por entre rosas rotas e rotas tortas
chuto uma lata vazia.
Neste gesto salvador, dali me liberta a razão.
No entanto, é muito tarde:
o anjo barbudo me diz: “transformar o mundo”.
Imóvel, um vento de moscas
desalinha capins nos meus cabelos:
janelas profundas de paredes alongadas
trocam olhares maliciosos e cúmplices,
me possuem as horas do sonho.
Um demônio de batina me arrasta
aos sorrisos do velório.
Quando um galo ensaia um solfejo,
as lavadeiras da madrugada
jogam bacias de lágrimas
nas vidraças dos meus ossos.
O defunto se afoga na pia batismal:
meus pés flutuantes,
descendo as escadas do sonho,
pisam o abismo
do derradeiro degrau não esperado,
e o meu coração esgotado
se liberta dos rumores
de todos os clamores tardios.
Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1982.
meus pés flutuantes,
descendo as escadas do sonho,
pisam o abismo
do derradeiro degrau não esperado,
e o meu coração esgotado
se liberta dos rumores
de todos os clamores tardios.
Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1982.
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