Zen e a arte da manutenção de motocicletas
Robert M. Pirsig
25.
Hoje de manhã discutimos a solução para o problema do empacamento, a imperfeição clássica, causada pela razão tradicional. Agora devemos falar do seu correspondente romântico, a feiúra da tecnologia, produzida pela razão.
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A feiúra da qual os Sutherlands fugiam não é inerente à tecnologia. Eles pensavam assim porque é muito difícil separar a tecnologia da feiúra. Mas a tecnologia é apenas a produção das coisas, e essa produção, por si mesma, não pode ser feia. Do contrário não haveria beleza nas artes, que também incluem o aspecto produtivo. [...]
A feiúra também não é inerente aos materiais utilizados pela moderna tecnologia – como se ouve dizer por aí. Os plásticos e materiais sintéticos produzidos em escala industrial não são maus em si. Só que originaram uma série de associações desagradáveis. Quem passa a vida inteira numa prisão de paredes de pedra, provavelmente vai encarar a pedra como um material essencialmente repulsivo, mesmo que ela seja a matéria-prima da escultura. Quem vive numa repugnante prisão de tecnologia plástica, que teve início com os brinquedos da infância e continua pela vida afora, atravancando a existência com uma batelada de produtos de consumo que para nada servem, provavelmente verá o plástico como algo essencialmente feio. Mas a verdadeira feiúra da tecnologia moderna não se encontra em nenhum material, formato, ato ou produto. Estes são apenas os aspectos nos quais parece residir a baixa Qualidade. É nosso costume atribuir Qualidade aos sujeitos e objetos que nos dão essa impressão.
A verdadeira feiúra não provém dos objetos, nem da tecnologia. Também não provém, segundo a metafísica de Fedro, de nenhum sujeito da tecnologia, das pessoas que a produzem, ou daqueles que a utilizam. A Qualidade, ou sua ausência, não está no sujeito, nem no objeto. A verdadeira feiúra localiza-se na relação entre as pessoas que produzem a tecnologia e as coisas produzidas, que gera uma relação semelhante entre as pessoas que usam a tecnologia e as coisas por elas utilizadas.
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A resposta para o conflito entre os valores humanos e as necessidades tecnológicas não está na fuga. Fugir da tecnologia é impossível. Para resolver o conflito, é preciso romper as barreiras do pensamento dualista, que impedem uma compreensão integral do que seja a tecnologia – não uma exploração da natureza, mas uma fusão entre natureza e espírito humano, numa nova criação que transcende a ambos. [...]
Em conseqüência disso, ocorre um fenômeno bem típico da tecnologia moderna, uma monotonia geral da aparência, tão deprimente que precisa ser coberta com o verniz da “sofisticação” para ser aceita. E isso só piora as coisas aos olhos de quem é sensível à Qualidade romântica. Aliás, isso não é apenas desgraçadamente monótono, mas também falso. Essas duas expressões resumem com bastante exatidão a moderna tecnologia americana: carros sofisticados, motores de popa sofisticados, máquinas de escrever sofisticadas, roupas sofisticadas; geladeiras sofisticadas, cheias de comida sofisticada, nas cozinhas de casas sofisticadas. Brinquedos de plástico sofisticados para crianças sofisticadas, que nos natais e nos aniversários estão sempre na moda, assim como seus pais. A gente mesmo tem que ser profundamente sofisticado para não se encher disso tudo de vez em quando. É a sofisticação que nos satura: essa feiúra tecnológica coberta por uma calda de falsificação romântica, na tentativa de se converter em beleza e produzir lucro para pessoas que, embora sejam sofisticadas, não sabem por onde começar, porque ninguém jamais lhes disse que existe neste mundo uma coisa chamada Qualidade, que é genuína, não sofisticada. [...]
Creio que se quisermos reformar o mundo e transformá-lo num lugar melhor para viver, não podemos só ficar falando sobre relações de natureza política, que serão inevitavelmente dualistas, cheias de sujeitos e objetos, e de relações entre ambos; e nem podemos falar dos programas repletos de coisas a serem cumpridas por terceiros. Na minha opinião, essa abordagem começa pelo fim, e confunde o fim com o início. Os programas políticos são importantes produtos finais da qualidade social, que só poderão funcionar se a estrutura subjacente dos valores sociais estiver correta. Esses valores só estarão corretos se os valores individuais estiverem corretos. Para melhorar o mundo, devemos começar pelo nosso coração, nossa cabeça e nossas mãos, e depois partir para o exterior. [...]
Fonte: Pirsig, R. M. 1988 [1974]. Zen e a arte da manutenção de motocicletas: uma investigação sobre valores, 8a edição. RJ, Paz e Terra.
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