Noturno
Raul de Leoni
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...
Os pinheiros pensavam coisas longas,
Nas alturas dormentes e desertas...
O aroma nupcial dos jasmins delirantes,
Diluindo um cheiro acre de resinas,
Espiritualizava e adormecia
O ar meigo e silencioso...
A ronda dos espíritos noturnos,
Em medrosos rumores,
Gemia entre os ciprestes e os loureiros...
Na penumbra dos bosques, o luar
Entreabria clareiras encantadas,
Prateando o verde malva das latadas
E as doces perspectivas do pomar...
As nascentes sonhavam em surdina,
Numa tonalidade cristalina,
Monótonos murmurinhos,
Gorgolejos de águas frescas...
Sobre a areia de prata dos caminhos,
A sombra espiritual dos eucaliptos,
Bulindo ao sopro tímido da aragem,
Projetava ao luar desenhos indecisos,
Ágeis bailados leves de arabescos,
Farândolas de sombras fugitivas...
E das perdidas curvas das estradas,
De paragens distantes,
Como fantasmas de serenatas,
Ressonâncias sonâmbulas traziam
A longa, a pungentíssima saudade
De cavatinas e mandolinatas...
Lembro-me bem, quando em quando,
Entre as sebes escondidas,
Um insidioso grilo impertinente,
Roendo um som estridente,
Arranhava o silêncio...
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...
Eu era bem criança e, já possuindo
A sensibilidade evocadora
De um poeta de símbolos profundos,
Solitário e comovido,
No minarete do solar paterno,
Com os pequeninos olhos deslumbrados,
Passei a noite inteira, o olhar perdido,
No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno,
Dos eternos espaços constelados...
Era a primeira vez que eu contemplava o mundo,
Que eu via face a face o mistério profundo
Da fantasmagoria universal
No prodígio da noite silenciosa.
Era a primeira vez...
E foi aí, talvez,
Que começou a história atormentada
Da minha alma, curiosa dos abismos,
Inquieta da existência e doente do Além...
Filha da maldição do Arcanjo rebelado...
Sim, que foi nessa noite, não me engano,
– Noite que nunca mais esquecerei –
Que – a alma ainda em crisálida,– velando
No minarete do solar paterno,
Diante da noite azul – eu senti e pensei
O meu primeiro sofrimento humano
E o meu primeiro pensamento eterno...
Como fora do Tempo e além do Espaço,
Ser sem princípio, espírito sem fim,
Sofria toda a humanidade em mim,
Nessa contemplação imponderável!
Já nem ouvia o trêmulo compasso
Das horas que fugiam pela noite,
Que os olhos soltos pela imensidade,
Numa melancolia deslumbrada,
Imaginando coisas nunca ditas,
Todo eu me eterizava e me perdia
Na idéia das esferas infinitas,
Na lenda universal das distâncias eternas...
No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,
Sob a lenda encantada do luar...
Foi nessa noite antiga
Que se desencantou para a vertigem
A suave virgindade do meu ser!
Já a lua transmontava as cordilheiras...
Cães ladravam ao longe, em sobressalto;
No pátio das mansões, na granja das herdades,
O cântico dos galos estalava,
Desoladoramente pelos ares,
Acordando as distâncias esquecidas...
E, então, num silencioso desencanto,
Eu fui adormecendo lentamente,
Enquanto
Pela fria fluidez azul do espaço eterno
Em reticências trêmulas, sorria
A ironia longínqua das estrelas...
Fonte: Leoni, R. 1998. Luz mediterrânea. BH, Garnier. Poema originalmente publicado em 1922.
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