O deserto
Helder Macedo
Agora o vazio
agora o deserto
agora o vazio
porque estou sem mim
agora o deserto
porque a vida que gerei
negou a vida
chorai chorai comigo
ou tapai-me a boca
com pedras e com estrume
chorai chorai chorai
porque aquele que tinha em si
a morte e a vida
escolheu a morte
recusou a vida
e eu não sei senão chorar
neste deserto
e eu não sei
e eu não sei
e o deserto é vazio
e o deserto sou eu
porque a vida que gerei
escolheu a morte
essas vozes que ouvias
meu menino
essas vozes que ouviste
e chamavam por ti
não era a morte não
que a morte é muda
e quando a morte fala
é porque a vida
era a voz do que tu és
e não conheces
a chamar-te por ti
a chamar o seu dono
para lhe mostrar
que toda a eternidade
está contida
no teu corpo
que podes conhecer
a eternidade
pois não há outra
além de conhecê-la
no prazo temporário
do teu ser
e só ai
só em ti
porque ela é tão finita
como tu
é tão mutável
e tudo o que o não seja
é só o nada
nada
nada
ah chorai comigo
ou então matai-me
recusaste
ser tudo quanto és
recusaste
encontrar-te
face a face
com o segredo de ti
ou cegaste
quando o viste
e guardaste só nos olhos
a visão
que projectaste no vazio
e então morreste
antes de ser
pois és profeta
de mundos que não há
e não do mundo
e morreste
e morreste
e morreste antes de seres
e não deste o teu nome
à tua vida
e eu choro
choro
choro
sobre o teu pavor
de não teres alma
de não seres tu
a alma do teu corpo
e choro sobre mim
que te gerei
e pari morte
porque negaste
a vida que em mim tinha
e que te dei
e fiquei só
e estou sem nada
e o meu ventre está oco
é o vazio
e sequei
e sequei
como o deserto
Fonte: Melo e Castro, E. M. 1973. O próprio poético. SP, Quíron. Poema originalmente publicado em 1969.
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