Primeira elegia
Arturo Torres Rioseco
Ai como me deixaste
Tão cheio de incerteza e de cuidado!
Quando me abandonaste
Andava eu, coitado,
Como se o mundo fora verde prado.
Embriagado no gozo
Da juventude andei pelas campinas;
O mundo generoso
Ofertava-me as finas
Uvas, rios e bocas de meninas.
Os mansos animais
– Os animais de Deus, – iam comigo,
Eram todos iguais
Naquele suave abrigo,
Todos, e o abutre era da pomba amigo.
No meu contentamento
Eu ia nas manhãs nu de pecado,
Ia puro no vento,
E no fogo sagrado
Do sol levava o corpo levantado.
Em plena luz te via,
Na luz e no ar aberto te buscava;
Eras toda alegria,
e quando eu só ficava,
Parecia que o mundo se acabava.
Ai que de ti afastado,
Era a noite, era a terra, era a tormenta,
O círculo fechado,
Era o mundo em que venta
A noite de Valpúrgis turbulenta!
Distanciada a essência,
O perfume suavíssimo da rosa,
Ah a inefável ardência
De uma formosura, a milagrosa
Vista que junto a ti minh’alma goza.
Com tua formosura
Simples, zonas inteiras acendias,
Influías doçura
Nos olhos das bravias
Feras e os prados de verdor enchias.
Eu contemplava a vida
Feita rosa no vale do teu peito,
Contemplava-a incendida
No inexprimível jeito
De teus braços e pernas sem defeito.
Eu gozava-a desperto
No ovo auroral dos joelhos, ó candura!
Em completo concerto,
Na consonância pura
De sol fecundador e semeadura.
Gozava-a no teu beijo,
Nos lábios de salivas redolentes,
Na língua, onde o desejo
Punha cravos ardentes,
E na umidade agreste dos teus dentes.
Gozava-a na quentura
Da tua pele em sua flor primeira,
E na grata frescura
De florida ladeira
Que vai de uma cadeira a outra cadeira.
Da humana companhia,
Do bulício do mundo eu me afastava,
E assim me recolhia
E morrer me deixava
No teu olhar, a alma rendida e escrava.
Teu olhar de prodígios
A iluminar-me numa luz tão pura,
Que apagava os vestígios
Da entranhada amargura
Na paz da tua angélica ternura.
Ternura de ovelhinha,
Ternura material e luminosa,
Branda queixa que vinha
Numa aura fervorosa,
Como o esvaecimento de uma rosa.
Tudo isso era o meu mundo,
Meu mundo em ti, sem quem já não existe,
Um abismo profundo
Desde que me fugiste,
Mundo que só de sombra hoje consiste.
Solidão pavorosa,
Povoada das espécies mais estranhas,
Na frialdade odiosa
Deslizam as aranhas,
Lutam répteis... Mundo de pena e sanhas!
Aqui meu ser desfaz-se
Em asquerosa morte sepultado.
O cordeiro que pasce,
Ao ver meu triste estado
Sola ao vento o balido desolado.
Minh’alma prisioneira
É falena de luz em cova escura;
A doce companheira,
Cheia de compostura,
Não pode compreender-lhe a desventura.
Tu dormes em teu leito,
Em teu leito de sedas e de plumas;
Tu trazes sobre o peito
Com que os lençóis perfumas,
O jasmim que se banha nas espumas.
Segues despreocupada,
Não sentes minha dor da tua ausência.
À brisa perfumada
Cedes a tua essência,
E ela a vai distribuindo em consciência.
Eu vou por entre a gente,
Pelas cidades cheias de pecado,
Em um ritmo dolente
De homem desamparado,
Em profunda tristeza mergulhado.
Vou sem rumo e sem ânsias
À toa em becos ermos e vulgares,
Por lúgubres estâncias,
Por frios bulevares,
Pela agonia cínica dos bares.
Ai miséria infinita
De te saber estranha à minha sorte,
De não ter na desdita
Nada que me conforte
Senão pensar na paz final da morte!
Ela que sempre mora
Junto ao triste que chora o bem perdido,
Com ela vou agora,
Longe de todo ruído,
Olvidado de tudo para o olvido.
Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1947.
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home