05 agosto 2008

Confissão piramidal

Roberto Echavarren

pirámides formando en un momento (Julián del Casal)

Se a distribuição de azuis nessa vertigem
cônica, em vésperas de primavera
sobre a colcha, espera tudo da música
embora colabore para os espelhismos de finais
plenos de sentidos, é porque a vida
traz suas mancheias apertadas, seus ramalhetes, o torneado
turbante do qual o sol escapa girando
e não sabemos qual é a relação entre “arte” e “vida”
salvo quando o pêlo de uma gata no cio se eriça.
Se pudesses descrever a vida como uma coleção de vestidos
ou crimes que saltam à vista:
penso no instantâneo de um indonésio quando lhe atiram
na cabeça, mas essa imagem,
que está à minha disposição é uma entre outras
e no espelhismo do meu corpo absorve e expele,
à luz tíbia da janela, aparece uma onda de piolhos,
desenovela-se a pelugem de um macaco, fixada com coágulos de sangue contra o crânio,

mas seus olhos não se correspondem com essa ou outra imagem,
são os olhos da morte, ou melhor, do estar morrendo:
vertigem da mulher que acorda no teto de seu automóvel
transformado em nó de ferros, vê sua filha jazer a seu lado
e ao querer tocá-la nota que não há nada onde havia um braço,
que não tem braços, que foram abolidos
como uma folha solta aprisionada entre as páginas de um livro;
onde havia um mundo ainda há um mundo.
“Nós quase te quisemos. Faltou pouco
para nos convencermos. Talvez o problema não esteja em ti,
mas numa nova forma de ver que foi se insinuando ultimamente.
Ou talvez, e isso pode permitir-nos sermos mais exatos:
uma maneira de olhar que era a nossa
mas que já não consideramos útil, ou interessante, ou possível prosseguir.
Talvez os problemas de nossa economia
alterem as realidades de não digamos uma década,
mas daqueles poucos meses anteriores a esse brutal
começo da primavera. No próprio ar,
os altos repentinos no clima
desta cidade, os pináculos de ruído,
a luz do sol na água de alguns olhos verdes, a certa hora da tarde,
muda algo tão incongruente como o cardigan da hora de jantar.
E tua vida assim, entre os crepúsculos
instantâneos e os incertos períodos de cegueira,
transita ruas que rapidamente deixaram de ser as mesmas
e todos os trastes de uma incipiente parafernália
com suas particulares órbitas de interesse, seus contrastes
ou divergências dentro do espírito de uma época,
quando se buscava simplesmente expandir ou aprofundar
os limites da compreensão e as condições do diálogo,
tornaram-se agora os mensageiros tresnoitados de uma mudança
em que os indícios não revertem a um sistema, senão implicam de súbito
que os mais inocentes sonhos de império
ficaram sem o menor xale para cobrir as costas,
sem a menor possibilidade de acordo,
de somações que os desígnios provedores do princípio do dia
nos fazem ver agora como ruínas
antes que se tenha sequer acabado os fundamentos.
Mas a aventura é descrita em termos
tão encantadores, os cronistas continuam falando
de uma Flórida de saudações;
já não salões e salões, decorados e mobiliados
segundo o gosto prolixo dos aposentos de inverno,
onde a alvorada, tão cedo agora, chega para mostrar
o ligeiro desbotado ou deterioração dos materiais mais seguros,
o veludo, por exemplo, enroscando-se nos pingentes torturados
nas majestosas de um cortinado, pelo qual
o Príncipe de Urbino está envolto como uma crisálida
frente à alvorada já vermelha de desastres;
ou as amêndoas e o marzipan macerados nesta torta nupcial,
ou as fímbrias amassadas com as colunas ainda verticais
porém partidas, e os diademas, o índigo do mar
e o kohl de sobrancelhas e pestanas;
as camisas arrojadas a uma navegação de corpo perdido;
a paisagem decapitada; o indistinto
butim que um emigrado arrasta e incorpora,
do qual caem fragmentos, jóias são roubadas,
novos frisos aparecem como um mar esmeralda
ou o cone de um sorvete de menta.
Entre a colcha desgarrada saem os pés indenes,
os pés de barro do colosso,
prontos para calçar-se de novo para a empreitada
do conquistador do turno, pés alados,
pés cansados; pés que são de fato
o único espólio da batalha.”

Fonte: Costa, H. 1992. Antologia de poesia hispano-americana atual. Revista USP 13: 186-205. Poema originalmente publicado em 1988.

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