01 dezembro 2008

Lila

Robert M. Pirsig

1.
Lila não sabia que ele estava lá. Dormia profundamente, aparentemente em meio a um sonho ruim. Na escuridão, ele ouviu seus dentes ranger e sentiu seu corpo virar subitamente, enquanto lutava contra alguma ameaça que somente ela podia ver.

A luz que vinha através da escotilha aberta era tão fraca que ocultava todas as linhas traçadas pelos cosméticos ou pela idade, e naquela hora ela parecia um doce querubim, uma garotinha loura de maçãs do rosto salientes, narizinho arrebitado e um rosto infantil bem comum que, de tão familiar, despertava uma espécie de afeição espontânea. Ele tinha a sensação de que, quando a manhã viesse, ela abriria de uma só vez os olhos muito azuis e eles brilhariam de excitação ante a perspectiva de mais um dia de sol e pais sorridentes e talvez toucinho cozinhando no fogão e felicidade por todo canto.

Mas não ia ser assim. Quando Lila abrisse os olhos, num atordoamento de ressaca, veria as feições de um homem grisalho de quem nem sequer ia se lembrar – alguém que tinha encontrado num bar, na noite anterior. Náusea e dor de cabeça talvez provocassem remorso e desprezo por ela mesma, mas não muito, ele achava – ela já tinha passado por aquilo muitas vezes – e aos poucos ela pensaria num jeito de voltar para a vida que estava levando antes de encontrar aquele ali.
[...]

Fonte: Pirsig, R. M. 1993. Lila: uma investigação sobre a moral. RJ, Rocco.

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