O que é memória?
Ralph W. Gerard
Um manual de bioquímica, muito usado no começo deste século, tinha uma famosa passagem sobre a memória do óleo de linhaça. A exposição à luz faz com que o óleo se torne grumoso. Uma exposição curta pode não provocar qualquer mudança visível. Mas numa iluminação posterior o óleo se transformará mais rapidamente do que aconteceria se nunca tivesse sido exposto à luz. O óleo se recorda de sua experiência anterior e se comporta de forma diferente por causa disso. Sua memória consiste no fato de que a luz produz, entre outras coisas, substâncias que auxiliam as oxidações induzidas pela luz que o tornam grumoso.
Por mais longe que isso possa estar da lembrança do discurso de Gettysburg, essa experiência indica claramente uma das formas pelas quais a memória trabalha – por meio de traços materiais do passado – e a dificuldade de definir o que é memória. Realmente, o comportamento do óleo e o do ser humano que memoriza o discurso de Gettysburg são apenas extremos de um espectro desse comportamento na natureza. Entre esses extremos praticamente não há solução de continuidade, e qualquer conceito que defina a memória de uma forma muito menos ampla do que ‘a modificação do comportamento pela experiência’ dificilmente será adequado. A consciência, por exemplo, não é necessária para a memória, pois o homem pode lembrar, e relatar sob hipnose, inúmeros detalhes que sua consciência nunca percebeu.
Onde, então, podemos marcar a fronteira? Um seixo, polido pela corrente, rola diversamente da pedra angular original. A experiência, neste caso, modificou o comportamento; o passado armazenou-se sob a forma de uma estrutura modificada. Ainda assim, isso não nos interessa muito como exemplo de memória. Talvez devêssemos restringir a noção de memória a modificações em sistemas que participam ativamente em provocar a mudança. Então o óleo de linhaça ‘memoriza’, bem como o músculo da perna de uma bailarina. Será que um embrião em desenvolvimento ‘se lembra’ dos passos principais, e principais enganos, na longa evolução das espécies? Será que as árvores ‘se lembram’ das boas e más estações através da espessura de seus anéis? Será um filme uma memória de luz em substâncias químicas e uma fita de gravação uma memória de som em magnetismo? Será uma biblioteca uma memória de pensamentos em livros e um cérebro uma memória de pensamentos em protoplasma? Mesmo identificar a memória, sem falar em explicá-la, não é tarefa simples.
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Fonte: Gerard, R. W. 1977. O que é memória? In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1953.
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