Vou-me, ó bela, deitar na dura cama
Vou-me, ó bela, deitar na dura cama,
de que nem sequer sou o pobre dono:
estende sobre mim Morfeu as asas,
e vem ligeiro o sono.
Os sonhos, que rodeiam a tarimba,
mil coisas vão pintar na minha idéia;
não pintam cadafalsos, não, não pintam
nem uma imagem feia.
Pintam que estou bordando um teu vestido;
que um menino com asas, cego e loiro,
me enfia nas agulhas o delgado,
o brando fio de oiro.
Pintam que entrando vou na grande igreja;
pintam que as mãos nos damos, e aqui vejo
subir-te à branca face a cor mimosa,
a viva cor do pejo.
Pintam que nos conduz doirada sege
à nossa habitação; que mil Amores
desfolham sobre o leito as moles folhas
das mais cheirosas flores.
Pintam que desta terra nos partimos;
que os amigos, saudosos e suspensos,
apertam nos inchados, roxos olhos
os já molhados lenços.
Pintam que os mares sulco da Bahia,
onde passei a flor da minha idade;
que descubro as palmeiras, e em dois bairros
partida a grã cidade.
Pintam leve escaler, e que na prancha
o braço já te of’reço, reverente;
que te aponta co dedo, mal te avista,
amontoada gente.
Aqui, alerta!, grita o mau soldado;
e o outro, alerta estou, lhe diz gritando.
Acordo com a bulha... Então conheço,
que estava aqui sonhando.
Se o meu crime não fosse só de amores,
a ver-me delinqüente, réu de morte,
não sonhara, Marília, só contigo,
sonhara de outra sorte.
Fonte: Gonzaga, T. A. 2000. Tomás Antônio Gonzaga, 4ª edição RJ, Agir. Poema publicado em livro em 1802.
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