22 fevereiro 2012

Fazendo a barba

Luiz Vilela

O barbeiro acabou de ajeitar a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:

– Ele está quente ainda...

– Que hora que foi? – perguntou o rapazinho.

O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.

– Que hora que ele morreu? – o rapazinho tornou a perguntar.

– De madrugada – disse o barbeiro –; ele morreu de madrugada.

Estendeu a mão:

– O pincel e o creme.

O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma. Era sempre rápido no serviço, mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo – o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.

– Não foi nada – disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça –; isso acontece...

O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco e então entregou ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de começar o serviço olhou para o rapaz:

– Você acharia melhor esperar lá fora? – perguntou, de um modo educado.

– Não, senhor.

– A morte não é um espetáculo agradável para os jovens. Aliás, para ninguém.

Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada.

Através da porta fechada vinha o murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.

O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha na mão e o afiador. Pôs a vasilhinha com o pincel na mesa.

O barbeiro afiava a navalha. No salão era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres da música clássica que ele ia assobiando. Ali no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento; alguém poderia quase deduzir que em sua cabeça o barbeiro assobiava uma marcha fúnebre.

– É tão esquisito – disse o rapazinho.

– Esquisito? – o barbeiro parou de afiar.

– A gente fazer a barba dele...

O barbeiro olhou para o morto:

– Que que não é esquisito? – disse. – Ele, nós, a morte, a vida; que que não é esquisito?

Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda e com a direita ia raspando.

– Deus me ajude a morrer com a barba feita – disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. – Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...

O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto: mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz, estava apenas olhando como ia seu trabalho.

– Será que ele está vendo a gente de algum lugar? – perguntou o rapazinho.

Olhou para o alto – o teto ainda de luz acesa – como se a alma do morto estivesse por ali observando-os; não viu nada, mas sentia como se ela estivesse por ali.

A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais morto.

– Por que a gente morre? – perguntou. – Por que a gente tem que morrer?

O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando na beirada da cama.

– Me dá a outra toalha – pediu –; e molhe o paninho.

O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou para escorrer. Entregou ao barbeiro, junto com a toalha.

O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.

– Por que será que a gente não acostuma com a morte? – perguntou o rapazinho. – A gente não tem que morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?

O barbeiro fixou-o um segundo:

– É – disse, e se voltou para o morto; começou a fazer o bigode.

– Não é esquisito? – perguntou o rapazinho. – Eu não entendo.

– Há muita coisa que a gente não entende – disse o barbeiro.

Estendeu a mão:

– A tesourinha.

Na casa o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.

– O pente – disse o barbeiro –; pode ir guardando as coisas.

Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.

– A tesourinha de novo – pediu.

O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha. O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode.

Os dois ficaram olhando.

– A morte é uma coisa muito estranha – disse o barbeiro.

Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.

Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:

– Vamos tomar uma pinguinha?

O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, não sabia o que responder.

– Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos – disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.

– Bem... – disse o rapaz.

O barbeiro pôs a mão em seu ombro e os dois entraram no boteco.

Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Nossas palavras. RJ, José Olympio. Conto publicado em livro em 1973.

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