27 outubro 2012

Madame Bovary

Gustave Flaubert

[Primeira parte]

1.
Estávamos na sala de estudos quando o diretor entrou, seguido de um novato com roupas à paisana e de um bedel que carregava uma carteira. Os que estavam dormindo acordaram, e cada um se levantou como que surpreendido em seu estudo.

O diretor fez-nos sinal para que nos sentássemos; depois, voltando-se para o mestre de estudos:

– Senhor Roger – disse-lhe a meia-voz –, aqui está um aluno que eu lhe recomendo; ele está entrando na quinta série. Se o trabalho e o comportamento dele forem meritórios, passará para os maiores, que é o seu lugar pela idade.

Ficando no canto, atrás da porta, onde mal se conseguia vê-lo, o novato era um garoto do campo, de uns quinze anos de idade, e estatura mais alta do que qualquer um de nós. Tinha os cabelos cortados retos na testa como um cantor de igreja de aldeia, com um jeito ajuizado e muito acanhado. Embora não tivesse ombros largos, o paletó curto de pano verde e botões pretos devia atrapalhá-lo, deixando-o pouco à vontade, e permitia ver, pela fenda das roupas, uns pulsos vermelhos habituados a ficar descobertos. As pernas, com meias azuis, saíam de umas calças amareladas bastante estiradas pelos suspensórios. Calçava sapatos fortes, mal engraxados, guarnecidos de pregos.

Começaram a recitar as lições. Ele prestava plenos ouvidos, atento como ao sermão, nem mesmo ousando cruzar as pernas, nem apoiar-se nos cotovelos, e, às duas horas, quando bateu o sino, o mestre de estudos precisou avisá-lo para que entrasse conosco na fila.

Tínhamos o costume, ao entrar na sala, de jogar os gorros no chão, para ficar com as mãos mais livres; era preciso, desde a soleira da porta, atirá-los debaixo das carteiras, de maneira a bater contra a parede fazendo muita poeira; era o que se fazia.

Mas ou porque ele não tivesse notado essa manobra, ou porque não tivesse decidido submeter-se a ela, a oração já havia acabado e o novato ainda mantinha o casquete sobre os dois joelhos. Era uma dessas carapuças de natureza compósita, onde se encontram elementos de gorro de pelo, de chapska, do chapéu redondo, do boné de lontra e do gorro de algodão, uma dessas pobres coisas enfim, cuja feiura muda tem a mesma profundeza de expressão que o rosto de um imbecil. Ovoide e abaulado com barbatanas, começava por três rolos circulares; em seguida, alternavam-se, separados por uma faixa vermelha, losangos de veludo e de pelos de coelho; vinha depois uma espécie de saco que terminava por um polígono cartonado, coberto por um bordado em galão complicado, e de onde pendia, na ponta de um longo cordão bem fino, uma cruzinha de fios de ouro, à maneira de glande. Era novo; a viseira brilhava.

– Levante-se – disse o professor.

Ele levantou-se; o boné caiu no chão. Toda a classe se pôs a rir.

Abaixou-se para apanhá-lo. Um vizinho derrubou-o com o cotovelo, ele o apanhou mais uma vez.

– Livre-se de seu capacete – disse o professor, que era um homem espirituoso.

Houve uma gargalhada geral dos alunos, que deixou o pobre rapaz sem jeito, tanto assim que não sabia se segurava o boné na mão, deixava-o no chão ou o punha na cabeça. Voltou a sentar-se e o pôs no colo.

– Levante-se – repetiu o professor – e diga-me o seu nome.

O novato articulou, com uma voz balbuciante, um nome ininteligível.

– Repita!

O mesmo balbucio de sílabas se fez ouvir, coberto pelas vaias da classe.

– Mais alto – gritou o mestre. – Mais alto!

O novato, tomando então uma resolução extrema, escancarou a boca e lançou a plenos pulmões, como para chamar alguém, esta palavra: “Charbovari”.

Foi uma gritaria que se lançou como um salto, subiu em crescendo, com explosões de vozes agudas (uivavam, latiam, saltitavam, repetiam: “Charbovari! Charbovari!”), e que depois rolou em notas isoladas, acalmando-se com grande dificuldade, e por vezes recomeçava de repente na linha de uma fileira de carteiras onde se destacava ainda aqui e ali, como um rojão mal apagado, algum riso abafado.

Entrementes, debaixo da chuva de castigos, a ordem pouco a pouco se restabelecia na classe, e o professor, tendo conseguido captar o nome de Charles Bovary, exigindo que o ditasse, soletrasse e relesse, mandou o pobre coitado ir imediatamente sentar-se no banco dos preguiçosos, ao pé da cátedra. Ele se pôs em movimento, mas antes de ir, hesitou.

– O que é que você está procurando? – perguntou o professor.

– Meu bon… – fez timidamente o novato, lançando ao redor de si olhares inquietos.

– Quinhentos versos para toda a classe! – exclamado com voz furiosa, deteve, como o Quos ego, uma nova borrasca.

– Fiquem quietos! – continuava o professor indignado, e enxugando a testa com um lenço que acabara de pegar na touca: – Quanto a você, novato, vai me copiar vinte vezes o verbo ridiculus sum.

Depois, com voz mais suave:

– Ei! O seu casquete, você vai achá-lo; ninguém o roubou!

Tudo retomou a calma. As cabeças curvaram-se sobre os cadernos, e o novato ficou durante duas horas numa postura exemplar, embora houvesse, de vez em quando, alguma bolinha de papel lançada de um bico de pena que vinha bater em seu rosto. Mas ele se limpava com a mão e continuava imóvel, de olhos baixos.
[...]

Fonte: Flaubert, G. 2011 [1857]. Madame Bovary. SP, Penguin-Companhia.

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