17 novembro 2012

O amor, o desprezo e a esperança


Eu te peguei junto ao meu peito como uma pomba que uma menina asfixia sem saber
Eu te peguei com toda a tua beleza tua beleza mais rica que todos os garimpos da Califórnia o foram no tempo da febre do ouro
Enchi minha avidez sensual de teu sorriso de teus olhares de teus gemidos
Possuí tive ao meu dispor o teu orgulho mesmo quando te mantinha agachada e sofrias meu poder e minha dominação
Pensei ter tudo isto e era só um prestígio
E fico igual a Íxion depois que ele fez amor com o fantasma de nuvens feito à semelhança daquela que chamam Hera ou Juno a invisível
E quem pode agarrar as nuvens quem pode pôr a mão sobre uma miragem e que se engana aquele que crê encher os braços do azul celeste
Acreditei possuir toda a tua beleza e tive só o teu corpo
O corpo infelizmente não tem a eternidade
O corpo tem a função de gozar mas não tem o amor
E é em vão agora que tento abraçar teu espírito
Ele foge ele me foge de todo lugar como um nó de serpentes que se desfaz
E teus belos braços no longínquo horizonte são cobras cor de aurora que se enrolam em sinal de adeus
Fico confuso fico confundido me sinto cansado deste amor que você despreza
Sinto vergonha deste amor que desprezas tanto
O corpo não vai sem a alma
E como poderei esperar reencontrar teu corpo de antes já que tua alma está tão longe de mim
E que o corpo se juntou à alma
Como fazem todos os corpos vivos
Ó tu que eu só possuí morta

*

E no entanto enquanto eu às vezes olho ao longe se chega o oficial dos correios
E que espero como uma delícia tua carta cotidiana meu coração pula como um cabrito quando vejo chegar o mensageiro
E imagino então coisas impossíveis já que teu coração não está comigo
E imagino então que vamos embarcar nós dois sozinhos talvez três e que nunca ninguém no mundo saberia nada de nossa querida viagem ao nada mas para outra parte e para sempre
Neste mar azul ainda mais azul que todo azul do mundo
Neste mar onde nunca se gritaria Terra à vista
Para tua atenta beleza meus cantos mais puros que todas as palavras subiriam mais livres ainda do que as ondas
Será tarde demais meu coração para esta misteriosa viagem
O barco nos espera é a nossa imaginação
E a realidade nos alcançará um dia se as almas se alcançarem
Para a bela demais romaria

*

Vamos meu coração de homem a lâmpada vai apagar-se
Derrama nela o teu sangue
Vamos minha vida alimenta esta lâmpada de amor
Vamos canhões abram a estrada
E que chegue enfim o tempo vitorioso o querido tempo do retorno

*

Dou à minha esperança meus olhos estas pedrarias
Dou à minha esperança minhas mãos palmas da vitória
Dou à minha esperança meus pés carros de triunfo
Dou à minha esperança minha boca este beijo
Dou à minha esperança minhas narinas que perfumam as flores de meados de maio
Dou à minha esperança meu coração de promessa
Dou à minha esperança todo o futuro que treme como pequena luz ao longe na floresta

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1947.

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