Flautista
Álvaro Alves de Faria
Só fui ser poeta aos 60 anos
quando todos os poemas
já estavam escritos
e poesia não havia mais.
Tocador de flauta
sopro árias inúteis
dos que não sabem tocar.
Toco também sinos nas igrejas
mas só em dias póstumos
ou em casamentos desfeitos.
Aos 60 anos as imagens são outras
e também desnecessárias
como a flauta
como a música.
Só fui ser poeta aos 60 anos
quando eu já não sabia viver
como se fosse preciso viver
para ser poeta.
Então descobri o mar
mas era tarde.
Sempre me disseram
que poesia é sacerdócio
por isso andei sempre
com uma extrema-unção no bolso.
Só fui ser poeta
quando não tinha mais tempo
e me faltava o ar
quando
todos meus barcos de papel
já tinham afundado.
Só fui ser poeta
quando todas as rimas
rimaram palavras e poemas
mulheres e plantas
aves e ausências.
Antes eu somente
andava perdido
entre poemas e lugares
preces e acenos.
Antes não existiam os sons
que agora ouço
entre o esquecimento
e o que nunca foi.
No entanto toco minha flauta
para preencher as tardes
e trazer as aves
para mais perto de mim.
Descubro agora que os oceanos
são claros como as manhãs
e só agora compreendo
a cor do Outono.
Antes eu não me tinha
como me tenho agora
a bater à porta de uma casa
de janelas azuis.
Não sei se terei tempo
de tecer ainda os mesmos
poemas já escritos
de procurar a mesma poesia
que se perdeu nos chapéus
reminiscentes das pessoas.
Sou agora uma pessoa antiga
talvez tenha os olhos de meu pai
aqueles que se fecharam
na brancura das paredes.
Agora tenho comigo uma bolsa
de pequenas pedras
e algumas chuvas do final das tardes.
Os animais me seguem nesta planície
como se eu fosse um pastor sem volta
a percorrer montanhas nas fotografias.
É possível ver melhor agora
o fim das coisas
que também antes terminavam
mas eu não via.
Há um navio na minha porta
oceano que se abre ao mundo
numa viagem em torno de mim.
Só fui ser poeta aos 60 anos.
Sei agora o que significa a poesia
por isso tenho no rosto o espanto
e na boca
as palavras que não sei dizer.
Fonte: Alves, A. A. 2008. Melhores poemas: Álvaro Alves de Faria. SP, Global. Poema – com a dedicatória “Para Zuleika dos Reis, amiga” – publicado em livro em 2005.
1 Comentários:
Muito lindo. Profundo.
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