29 setembro 2013

Meu filho

Cruz e Sousa

Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
sob a guarda piedosa e muda das Esferas
dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
frágil e pequenino e tenro como as heras.

Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
o aspecto do meu filho assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.

Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,
em vão soluça e clama, eternamente presa
no segredo fatal dessa flor caprichosa,
do meu filho, a dormir, na paz da Natureza.

Minh’alma se debate e vai gemendo aflita
no fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
mais tarde irá tragar os venenos de Judas!

Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
o que vale tudo isso para outros desejos,
o que vale tudo isso para outros mistérios?!

De sua doce mãe que em prantos o abençoa
com o mais profundo amor, arcangelicamente,
de sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
o que vale esse amor, todo esse amor veemente?!

O longo sacrifício extremo que ela faça,
as vigílias sem nome, as orações sem termo,
quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça
de sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!

Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
se outras preocupações mais fundas me laceram,
se a graça de seu riso e a graça do seu viço
são as flores mortais que meu tormento geram?!

Por que tantas prisões, por que tantas cadeias
quando a alma quer voar nos páramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias
de tanto desespero e tanta luz incerta!

Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso
desse imenso Aspirar tão entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso,
as causas do que eu sofro, as causas do que eu gemo!

Pois então hei de ter um afeto profundo,
um grande sentimento, um sentimento insano
e hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo,
para a vala comum de eterno Desengano?!

Pois esse filho meu que ali no berço dorme,
ele mesmo tão casto e tão sereno e doce
vem para ser na Vida o vão fantasma enorme
das dilacerações que eu na minh’alma trouxe?!

Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia,
transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
macabras contorções de lúgubre comédia
que um cérebro de louco houvesse imaginado!

Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos,
que do mundo vilão ternamente defendo,
há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
sem que o possa acudir no suplício tremendo.

Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
nas diluentes visões dos largos Infinitos,
sem nunca mais ouvir os clamores horríveis,
a mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.

Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia,
um misto de ansiedade, um misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia
e desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura.

E sinto sede intensa e intensa febre, tanto,
tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra.
Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
desce por sobre mim sua estranha penumbra.

Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada...
o teu caminho é claro, é matinal de brilho,
não conheces a sombra e os golpes da emboscada.

Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro...
mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
a Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!

Fonte: Souza, C. 2001. Os melhores poemas de Cruz e Souza, 2ª edição. SP, Global. Poema publicado em livro em 1900.

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