Meu filho
Cruz e Sousa
Ah! quanto sentimento!
ah! quanto sentimento!
sob a guarda piedosa e
muda das Esferas
dorme, calmo, embalado
pela voz do vento,
frágil e pequenino e
tenro como as heras.
Ao mesmo tempo suave e ao
mesmo tempo estranho
o aspecto do meu filho
assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e
tal sonho tamanho
que eu nem mesmo já sei
tudo que vou sentindo.
Minh’alma fica presa e se
debate ansiosa,
em vão soluça e clama,
eternamente presa
no segredo fatal dessa
flor caprichosa,
do meu filho, a dormir,
na paz da Natureza.
Minh’alma se debate e vai
gemendo aflita
no fundo turbilhão de
grandes ânsias mudas:
que esse tão pobre ser,
de ternura infinita,
mais tarde irá tragar os
venenos de Judas!
Dar-lhe eu beijos,
apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
carinhos dar-lhe sempre,
efêmeros, aéreos,
o que vale tudo isso para
outros desejos,
o que vale tudo isso para
outros mistérios?!
De sua doce mãe que em
prantos o abençoa
com o mais profundo amor,
arcangelicamente,
de sua doce mãe, tão
límpida, tão boa,
o que vale esse amor,
todo esse amor veemente?!
O longo sacrifício extremo
que ela faça,
as vigílias sem nome, as
orações sem termo,
quando as garras cruéis e
horríveis da Desgraça
de sadio que ele é,
fazem-no fraco e enfermo?!
Tudo isso, ah! Tudo isso,
ah! quanto vale tudo isso
se outras preocupações
mais fundas me laceram,
se a graça de seu riso e
a graça do seu viço
são as flores mortais que
meu tormento geram?!
Por que tantas prisões,
por que tantas cadeias
quando a alma quer voar
nos páramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela
essas Origens cheias
de tanto desespero e tanta
luz incerta!
Quem me revela, pois,
todo o tesouro imenso
desse imenso Aspirar tão
entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as
causas do que eu penso,
as causas do que eu
sofro, as causas do que eu gemo!
Pois então hei de ter um
afeto profundo,
um grande sentimento, um
sentimento insano
e hei de vê-lo rolar, nos
turbilhões do mundo,
para a vala comum de
eterno Desengano?!
Pois esse filho meu que
ali no berço dorme,
ele mesmo tão casto e tão
sereno e doce
vem para ser na Vida o
vão fantasma enorme
das dilacerações que eu
na minh’alma trouxe?!
Ah! Vida! Vida! Vida!
Incendiada tragédia,
transfigurado Horror,
Sonho transfigurado,
macabras contorções de
lúgubre comédia
que um cérebro de louco
houvesse imaginado!
Meu filho que eu adoro e
cubro de carinhos,
que do mundo vilão
ternamente defendo,
há de mais tarde errar
por tremedais e espinhos
sem que o possa acudir no
suplício tremendo.
Que eu vagarei por fim
nos mundos invisíveis,
nas diluentes visões dos
largos Infinitos,
sem nunca mais ouvir os
clamores horríveis,
a mágoa dos seus ais e os
ecos dos seus gritos.
Vendo-o no berço assim,
sinto muda agonia,
um misto de ansiedade, um
misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na
estrelada harmonia
e desço e entro do
Inferno a furna hórrida, escura.
E sinto sede intensa e
intensa febre, tanto,
tanto Azul, tanto abismo
atroz que me deslumbra.
Velha saudade ideal,
monja de amargo Encanto,
desce por sobre mim sua
estranha penumbra.
Tu não sabes, jamais, tu
nada sabes, filho,
do tormentoso Horror, tu
nada sabes, nada...
o teu caminho é claro, é
matinal de brilho,
não conheces a sombra e
os golpes da emboscada.
Nesse ambiente de amor
onde dormes teu sono
não sentes nem sequer o
mais ligeiro espectro...
mas, ah! eu vejo bem,
sinistra, sobre o trono,
a Dor, a eterna Dor,
agitando o seu cetro!
Fonte: Souza, C. 2001. Os melhores poemas de Cruz e Souza, 2ª
edição. SP, Global. Poema publicado em livro em 1900.
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