Coração numeroso
Carlos Drummond de Andrade
Foi no Rio.
Eu passava na Avenida
quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos
bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
Meus paralíticos sonhos
desgosto de viver
(a vida para mim é
vontade de morrer)
faziam de mim
homem-realejo impertubavelmente
na Galeria Cruzeiro
quente quente
e como não conhecia
ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber,
eu disse: Acabemos com isso.
Mas tremia na cidade uma
fascinação casas compridas
autos abertos correndo
caminho do mar
voluptuosidade errante do
calor
mil presentes da vida aos
homens indiferentes,
que meu coração bateu
forte, meus olhos inúteis choraram.
O mar batia em meu peito,
já não batia no cais.
A rua acabou, quede as
árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.
Fonte: Moriconi, I., org.
2001. Os cem melhores poemas brasileirosdo século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1930.
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