Torre de menagem
Raul de Carvalho
Eu sempre pertenci às
pessoas simples
Com elas reparti minha
merenda meu azeite meu bolo
De pão-de-ló
Eu sempre dei às crianças
gulosas e lambuzadas
O meu pires de arroz-doce
Na minha casa sempre
houve
Um quinhão a mais de
alegria
Ou quando não foi de
alegria
Do sincero desejo que a
houvesse para todos
Eu sempre dormi
acompanhado
O resto é a história da
minha solidão
De que não falo com
vergonha
De que Deus não dê aos
homens
Tudo quanto eu quis
dar-lhes
Eu não sirvo para
príncipe
Nem para servo nem para
rei
Eu nasci para ser livre
Para ser livre e bom
Eu sempre soube quanto
custa
O pão a quem trabalha
Eu nunca cobicei
O pão que não é meu
Eu acumulei tristeza
Como quem enche de vinho
vermelho e maduro
Os tonéis dos anos
E quanto é dia de festa
não sabe
Como contentar todas as
sedes
Eu nunca perdi os olhos
Para a doçura que brota
De uns olhos de criança
E embora a infância tenha
sido para mim
A aprendizagem dos enigmas
Não nunca troquei o pólen
Que não há nas plantas e
nos seres
Pelo cinzento chão dos
cárceres
Eu nunca tive amor senão
ao vento ao Sol à resina dos pinheiros
Eu tive a solidão e o
amor dos companheiros
De que nunca mais me esqueci
Eu só pertenço ao coração
que flutua
Entre os lavradores e a seara
E mais perto da terra que
do céu
Porque Deus assim o quer
Eu dormi sempre na eira
Entre o pó do trigo o
silêncio das sementes o Sol do verão foi à noite o meu telhado
Eu amo tudo quanto vejo e
não
Amo mais coisas porque
não as vejo
Amo as estrelas porque
elas alumiam
De inverno as casas
pobres
E amo o Sol por ser ele o
cobertor
Dos que nasceram cheios
de frio
Eu amo tudo quanto
ardente ou triste
Me dá ocasiões para amar
Sentei-me sempre ao lado
Dos seres que se assemelham
Ao chão da casa térrea
Onde eu nasci
Fui eu quem ajudou a
enxugar
As primeiras lágrimas a
minha Mãe
Por isso quando falo de
amor sei o que digo
Por isso eu sempre tive o
jeito de oferecer
Aos outros o meu modo de
sofrer
Eu sempre tive o gosto
de morrer
Como vivi: mais perto da
planície
Com os olhos tão longe
que os não vejo
Com a boca tão perto que
a desejo
Com a alma tão minha que
a ofereço
A qualquer pessoa que me
agrade
Nasci com o coração
E os olhos da terra
A paisagem que me deram
para ver
Ensinou-me a esperança
Numa haste que sobe
Dia a dia sobe
E cada vez mais sobe
Do meu para o teu coração
Por isso me sabe bem tudo
o que digo
Porque não é a boca que o
ensina
Por isso a poesia foi meu
berço
Minha língua natal e
passageira
Por isso eu sei que a
nostalgia
De um bem que nunca foi
É a morada predilecta
Dos homens como eu
Tudo o que depois me
aconteceu
Foi mandado por Deus e
estava certo.
Na planície
À minha volta algumas
oliveiras
O branco imaculado das
paredes
O silêncio total e para
sempre
Um horizonte que promete
Ser o Mar
Uma casa humedecida
Com a água e os lilases
do quintal
A serenidade e o sorriso
Das pessoas mais velhas
Uma avó velhinha
conversando
Com a morte e comigo todo
o dia
Meu Pai que como eu fugiu
do mundo
A brancura do meu leito
O lume aceso e à minha
volta
Qualquer coisa que
tornava
Meus olhos demasiado
grandes
Qualquer coisa palpitante
E ameaçadora
Que foi meu inimigo e
salvador
Que foi meu sangue e meu
descanso
Que foi meu diário
milagre
Que foi o meu gosto pela
noite
E por tudo quanto a noite
encerra
De sagrado e misterioso
De implacável e de belo
De confusamente
melancólico
Para o coração do homem.
Deus quis que eu
plantasse a minha voz
Na terra árida
Que os meus dedos
abrissem
O caminho à água
Que a minha boca
desfolhasse
Em toda a parte a música
Em cada voz o lábio e a
cereja
Em cada aceno de outra
mão
A minha mão
Ah ninguém pode
Roubar-me à livre
Modulação do Amor
Meu coração aprende
Desde manhã aprende
A pulsar continuamente
Pelos que se amam
Em toda a parte meu
coração encontra
Motivos para ser forte e
doce
Cada palavra ou cada face
me devolve
O rosto inteiro da manhã
Com versos eu devolvo ao
Universo
A confiança que Deus
depositou em mim.
Fonte: Silva, A. C. &
Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema – com a
dedicatória ‘À Matilde Rosa Araújo e a Fernando Namora’ – publicado em livro em
1955.
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