31 agosto 2015

Epístola

José Elói Ottoni

Soprando a chama do aquecido engenho,
Batendo as asas da razão liberta,
Desprende o vate a suprimida pena
Da força oculta que lhe tolhe o rasgo.
Não teme o vento rugidor, não teme
A nuvem grossa que trovão despeja;
Transpondo o espaço, que às ideias obsta,
Navega afouto sobre o livre espaço.
Não cuides, Lília, que eu avance ousado
Além da meta circunscrita aos vates:
Da pátria amigo, o cidadão respeito,
Respeito as leis, a religião, o Estado;
Quando cheio de Apolo às nuvens mando
Meus pobres versos, da desgraça filhos,
O mesmo Númen, que os inspira e move.
Bafeja e manda que inspirados devam
Partir de um ponto, que no centro é fixo.
Salvando o golfão que as paixões exala,
Sem mancha, livre d’infecção, seguro
Do bafo crestador, que a mente empola,
Não sirvo ao prêmio da lisonja escravo;
Arrasto os ferros que os mortais arrastam.
Eu amo, ó Lília, e se amor é culpa,
De ser culpado não s’exclui quem ama.
Não zombe o sábio de me ouvir, atenda,
Escute o sábio a voz da natureza.
As plantas vivem porque as plantas amam;
Ao tronco unidas, quando os olmos brotam,
Brotam as verdes trepadeiras heras.
Não curva os braços verdejantes, ergue
Soberba o colo, e demandando as nuvens
A palmeira recebe, acolhe, afaga
Suspiros ternos que a saudade envia
No bafo meigo do amador distante.
Se o fido esposo que de longe exala
O suco etéreo, que vegeta e nutre,
Cedendo a força malfazeja expira;
A esposa, logo que a exalar começa
Do fluido exausto o deprimido alento,
Sequiosa pergunta, afável pede
Notícia ao vento, que lhe nega e foge;
Não vive a esposa quando o esposa acaba,
Perdendo a força nutritiva perde
O vigor da união que enlaça e prende:
E do esposo chorando a perda infausta,
Convulsa treme, solitária morre.
Reflete, ó Lília, nos purpúreos gomos,
Fecunda prole do virgínio fogo,
Que acende o pejo da engraçada Flora,
Vê, como a força vegetal rebenta.
Da florífera Vênus, do engraçado,
Formoso Adônis, que em consórcio unidos
Prestavam firmes os solenes votos
Qu’exige a prole de brincões amores.
Depois que a tocha nupcial acende,
O purpúreo Himeneu dá vida às flores,
Acode aos gomos, e rebenta o germe.
Não para o fluído, os filamentos incham,
Rebenta o cálix, e os amantes soltam
Do peito o aroma que perfuma os ares.
Oh santa, oh justa, oh sábia natureza!
Como é possível desligar-se um ente,
Que à mesma espécie do outro ente é unido:
Os voláteis no céu, no mar os peixes,
O pequeno réptil, o inseto informe,
Os entes do universo... ou nada existe,
Ou cada espécie à sua espécie é unida.
E se um ente mais nobre existe, o homem,
Se uma hidráulica mais sublime o nutre,
Qu’eficaz atração, que força ativa
Dispõe de um ente, que o autor dos entes
Manda que impere aos entes do universo,
Não por orgulho, sim por excelência
De um princípio, que move, anima e nutre!

Fonte (versos 11,12, 27-34): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. Poema dedicado ao Pe. Antônio Pereira de Souza Caldas (1762-1814), então recém-falecido.

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