21 maio 2016

Se eu fosse alguém ou mandasse

António Botto

Se eu fosse alguém ou mandasse
Neste mundo de vileza,
Só pensava numa coisa
– Acabar com a pobreza.
Dar à vida outra feição
Mais igual, mais repartida,
Seria o meu grande sonho,
A minha grande alegria,
E a cada boca num beijo
Dar o pão de cada dia.

Quem tem muito poderia
Ter menos um bocadinho
P’ra não haver tanto pobre
A pedir no meu caminho.
Não ouvir o desalento
À noite pelas tabernas,
Nem haver gente com fome
Lutando para viver
Porque eu sou pobre também
E não lhes posso valer.

Acabar com a miséria
Mãe do crime e da loucura
Seria ensinar a ler
Os vermes da sepultura.
Mas, cingido ao fatalismo
De uma luta desigual
O que há-de fazer um triste
Que só chegou a indigente?
– Renunciarmos a tudo
No futuro e no presente.

Não ouvir uma criança
Na tristeza de uma queixa
Fazer-nos sentir a morte
E o luto que ela nos deixa;
Podermos dar num sorriso
A expressão da felicidade;
Cada mortal possuir
A sua razão de ser,
– Assim gostava da vida
E gostava de viver.

Fonte (estrofe 1): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1941.

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