06 julho 2016

Ressurreição de Leopoldo Panero

António Osório

vendados sus ojos,
espera la resurrección de la carne
aqui, bajo esta piedra.
Leopoldo Panero, ‘Epitáfio’

A José Bento

1.
Não, Panero, não creio
na ressurreição da carne.
Não esperes debaixo dessa pedra:
Deus teve sempre a face
de um homem incorruptível
lutando contra os seus demónios.
Lázaro, que tudo soube e nada
disse, jaz a teu lado.

É melhor restituir aos outros
os nossos quinze anos,
a esperança de que sejam luminosos
e sobrevivam como sementes de luzerna,
e escrever, como tu, versos
que detinham o fogo e a neve divinas,
e amá-los como se neles
resplandecessem ainda os teus olhos
e a fé que os abrasava, limpos de cinza.

2.
E contudo, Panero, desejaria
matar-te a sede com um favo de mel,
com hortelã e funcho despertar-te o olfacto,
a vista com os olhos que amavas, azuis,
o tacto com a própria pele, recém-nascida.

Desejaria, sim, pudesses dizer
que presenciaste a transfiguração
do Deus dos mortos em Deus dos vivos
e que Ele sofreu mais que o Filho
para sair do sepulcro, e te ungiu
os ossos purificando a íntima lepra,
e que a tua alma penetrou no corpo
como a primavera dentro de um ninho.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1978.

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