O escritor que o mundo precisa neste momento
Rajeev Balasubramanyam
Todo ano eu torço para
que Ngugi wa Thiong’o ganhe o Prêmio Nobel de Literatura.
O escritor queniano é o
favorito há anos. Este ano, de acordo com o sítio de apostas Ladbrokes, as
chances eram de 4 para 1 a favor de Ngugi, seguido de Haruki Murakami, com 7
para 1, e Don DeLillo, com 12 para 1. Eu teria ficado desapontado se Murakami
ou DeLillo ganhasse. O romance de Ngugi, Wizard
of the crow, é uma obra-prima de 700 páginas que parece inventar um gênero
próprio, entre a sátira e o realismo mágico; fora da África, no entanto, ele teve
muito menos leitores que The wind-up bird
chronicle ou Underworld, embora
seja uma obra de estatura equivalente.
Quando soube da escolha
de Bob Dylan, em vez de Ngugi, para o Nobel de Literatura de 2016, não me
incomodei que o prêmio fosse para um músico [mas ver aqui], mas fiquei
impressionado de o comitê ter demonstrado um aparente alheamento da época em
que vivemos. Alfred Nobel deu instruções para que o prêmio fosse concedido “no
campo da literatura [para] o mais proeminente trabalho em uma direção ideal”.
“Trabalho proeminente” tem a ver com mérito literário e “direção ideal” com
valores, indicando um papel para o prêmio no sentido de moldar a perspectiva da
humanidade a cada ano.
Neste momento, os Estados
Unidos estão assoberbados com um candidato a presidente que propaga a misoginia
e apela aos que acreditam na supremacia branca. Em muitos outros países, os
neoliberais estão disputando o poder com a extrema direita e a esquerda está em
frangalhos. À luz de tudo isso, a decisão do comitê do Nobel soa irritantemente
míope. Este era o ano em que nós necessitávamos de um escritor como Ngugi.
A última vez que o Nobel
foi dado a alguém fora do campo convencionalmente entendido como literatura foi
em 1953,
quando o agraciado foi Winston Churchill, uma decisão que o comitê justificou
fazendo alusão não apenas ao seu “domínio da descrição histórica e biográfica”,
mas também à sua “brilhante oratória em defesa dos valores humanos mais
elevados”. É de se presumir que isto fosse uma alusão à sua retórica durante a
guerra, embora seja duvidoso que ele ganhasse, caso os seus crimes contra as
antigas colônias britânicas fossem de conhecimento geral.
Importância literária, política e ideológica
Esta aí a importância de
Ngugi. Nascido em 1938, filho de um fazendeiro em um Quênia rural ocupado pelos
britânicos, Ngugi cresceu trabalhando nas fazendas de crisântemos que foram de
seus antepassados. Ele atingiu a maioridade durante a Revolta dos Mau-Mau, que
foi seguida pela violenta reação do governo Churchill, incluindo a detenção de
150 mil integrantes da etnia gikuyu em campos de concentração, onde eles foram
eletrocutados, chicoteados e mutilados. Ele descreve vivamente esse período em
seus romances Weep not, child, o
primeiro romance do leste africano publicado em inglês, A grain of wheat [Um grão de trigo]
e Petals of blood.
Mais tarde, ao se
debruçar sobre a traição do povo queniano pela nova elite dominante, ele foi
preso sem um julgamento, escrevendo o primeiro romance moderno em gikuyu, Devil on the cross, no papel higiênico
da prisão. Em seguida, escreveu Decolonising
the mind, onde argumenta que os africanos, como parte do esforço pela
libertação dos grilhões mentais do colonialismo, deveriam escrever em suas
línguas nativas.
Para um escritor vindo da
África, um continente frequentemente tratado pelo resto do mundo como
irrelevante, a decisão de Ngugi de se afastar do inglês foi corajosa. De fato,
poderia ter levado ao seu desaparecimento da cena global, mas, em vez disso,
solidificou sua reputação como um escritor de elevado compromisso político, ainda
que poucos de seus contemporâneos ou dos autores iniciantes atendessem ao apelo
para escrever em seus idiomas nativos. A atitude de Ngugi em relação a isso, no
entanto, é marcadamente autoconsciente e flexível.
“Nós, da geração mais
velha”, disse ele à [revista] New African,
três anos atrás, “estamos tão unidos pelo nosso nacionalismo anticolonialista, algo
que é importante para nós, porém, a geração mais nova – eles estão livres. Note
que os personagens deles não são necessariamente africanos. Eles estão bastante
satisfeitos introduzindo personagens de outras raças e assim por diante... isso
é bom, pois eles estão crescendo em um mundo multicultural”.
Esta capacidade de
libertar a si mesmo de posições fixas permitiu a Ngugi manter a sua relevância
política. Wizard of the crow se passa
em uma fictícia República Livre de Aburĩria, com destaque para um ditador
megalomaníaco, conhecido apenas como o Governante. É uma crítica não só de figuras
reais, mas também do próprio poder político, no centro do qual ele coloca a
opressão patriarcal. O romance é escrito com uma mão cômica e radiante,
compassivo diante de pessoas comuns, satírico diante do Governante e seus
capangas, e, como Maya Jaggi afirmou em sua crítica
no Guardian, “notavelmente livre de
amargura” – vital, se o escritor quer permanecer atual, e impressionante, para
alguém exilado de sua terra natal por 22 anos.
Uma conjuntura crítica
Uma obra tão rica é de
importância potencialmente gigantesca para a nossa compreensão de como o mundo
chegou ao ponto em que está. Ngugi capta o processo, desde a pilhagem crua e a
violência do colonialismo à corrupção das elites nacionais do Terceiro Mundo
promovida pelas forças predatórias do capitalismo global, as quais, em Wizard of the crow, ele ousadamente representou como um fictício Banco Mundial.
Desde a publicação de Wizard of the crow, em 2006, Ngugi
escreveu três volumes de memórias, retornando aos períodos abordados em seus
romances. O primeiro, Dreams in a time of
war [Sonhos em tempo de guerra – Memórias de infância]
começa com os avós, na época da Conferência de Berlim, em 1885, quando os
países europeus dividiram a África entre eles, e, em seguida, nos conta a
história de sua própria infância como um trabalhador sem-terra. O segundo, In the house of the interpreter, trata
dos anos que passou em um colégio interno controlado pelos britânicos, perto de
Nairóbi, quando, durante a Revolta dos Mau-Mau, a casa de sua família foi destruída
e o seu irmão foi preso em um campo de concentração britânico. O terceiro
volume, Birth of a dream, relata os
quatro anos que passou na Universidade Makerere, em Uganda, enquanto o Quênia
se aproximava da independência e Ngugi começava a escrever suas primeiras obras
literárias.
Teria sido uma decisão
progressista dar o prêmio a Dylan 40 anos atrás (e, dada sua falta de
receptividade ao anúncio da premiação, suspeito que Dylan poderia até concordar
com isso), mas o mundo, em 2016, está em uma conjuntura crítica em termos de
nossa tomada de consciência ante o fascismo, o neoimperialismo e a supremacia
masculina branca, e o comitê do Nobel deveria ter reconhecido isso. Embora nenhum
romancista possivelmente possa alcançar tantas pessoas como um músico com a
fama de Dylan, nós ainda precisamos honrar o papel da literatura em mudar a
nossa consciência e mobilizar as nossas ações e, de todos os concorrentes ao
Nobel este ano, a voz de Ngugi é a mais urgente. Como ele próprio escreveu em
2005: “Palavras escritas também podem cantar”.
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