Sobre a naturalidade das coisas
Mary Catherine Bateson
A reflexão clara sobre o
mundo em que vivemos é dificultada por algumas confusões bastante primárias,
novas e velhas, sobre o uso habitual das palavras natureza e natural.
Parecemos acreditar facilmente
que é possível estar fora da natureza – que, com uma ajudinha lá de cima,
conseguiríamos nos colocar acima das contingências comuns, fugir às consequências
de nossos atos e nos livrar de maneira sobrenatural das realidades
excessivamente naturais que são a doença e a morte. Alguns empregos dessas
palavras parecem sugerir que é possível estar abaixo da natureza, como é o caso
dos atos ‘não naturais’ (às vezes chamados de ‘subumanos’), ou pais não
naturais (aqueles não amorosos ou que faltam com as obrigações da educação, sem
nenhuma relação lógica com o ‘filho natural’, aquele nascido fora do arranjo
culturalmente aceito que é o matrimônio).
Esses empregos têm em
comum a ideia de que a natureza é algo do qual podemos nos afastar, contornar.
Os problemas intelectuais gerados pela delimitação do domínio da ‘natureza’
provavelmente confundem mais do que aqueles criados pelo dualismo cartesiano,
apesar de sem dúvida serem relacionados. Descartes estava interessado em
definir um domínio para a ciência que estivesse livre da interferência
eclesiástica: res extensa, matéria, o
corpo físico, separado da mente ou espírito. O efeito disso foi a criação de
duas formas de causalidade distintas e esferas de discurso separadas que devem
de alguma forma ser reunidas. As definições populares para ‘natureza’ são mais
confusas, mas igualmente insidiosas. Assim como com o dualismo cartesiano, elas
tendem a enviesar o pensamento ético, a separar ao invés de incluir. Na cultura
ocidental, já se considerou a natureza como algo a ser controlado pela
humanidade, assim como o corpo deveria ser controlado pela mente.
Recentemente, nós
complicamos a situação ao rotular mais e mais objetos e materiais, desde
comidas até fibras e moléculas, como naturais ou não naturais. Isso cria um
domínio limitado e disforme para o natural, carregado de juízos de valor
subentendidos: o domínio sugerido no título The
end of nature, de Bill McKibben, ou The
American replacement of nature, de Irwin Thompson. No entanto, a natureza
não é algo que pode acabar ou ser substituído, tampouco é possível ficar fora
dela.
[...]
Fonte: Brockman, J. & Matson, K., orgs. 1997. As coisas são assim. SP, Companhia das Letras.
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