15 agosto 2018

Anjos & insetos. II. Alfred Russel Wallace


Flho de Thomas Vere Wallace e Mary Ann Greenell, Alfred Russel Wallace nasceu em Llanbadoc, vilarejo próximo à cidade de Usk, no sudeste do atual País de Gales, em 8/1/1823. Foi o penúltimo de nove irmãos: Elizabeth Martha (1808-1808), William (1809-1845), Elizabeth (1810-1832), Frances (1812-1893), Mary Anne (1814-1822), Emma (1816-1822), John (1818-1895), ele e Herbert Edward (1829-1851).

Até os cinco anos de idade, morou em Kensington Cottage (atual Kensington House), a casa onde nasceu, situada às margens do rio Usk e em cujos arredores teve os primeiros contatos com o mundo natural. Em 1828, a família foi para Hertford, terra natal da mãe, ao norte de Londres, onde ele começou a ter uma educação formal. Em 1835, a situação financeira da família sofreu um baque e, no início de 1837, ele teve de abandonar a escola, indo morar com seu irmão John, que já trabalhava como carpinteiro, em Londres.

Encontrando um parceiro

Em meados de 1837, foi trabalhar com o irmão mais velho, William, no condado de Bedfordshire, em um empreendimento envolvendo agrimensura. Em 1841, ele e o irmão foram para Neath, no País de Gales. Em razão do trabalho, cresceu o seu interesse por história natural, sobretudo botânica – queria identificar as plantas que via no campo. Passou a comprar livros de botânica e a colecionar espécimes. Dois anos depois, no entanto, os dois irmãos tiveram de se separar, pois os negócios não iam bem.

Em 1844, após algum tempo desempregado, Wallace foi aceito como professor em uma escola para crianças (Collegiate School), em Leicester, cidade de médio porte localizada a poucos quilômetros a nordeste de Londres. Foi lá que ele conheceu e se tornou amigo de Henry Walter Bates [1]. Os dois teriam se encontrado pela primeira vez no Instituto de Mecânica, um misto de escola técnica e centro cultural existente em várias cidades do Reino Unido, cuja biblioteca eles visitavam com bastante frequência.

No ano seguinte, porém, após a morte repentina de William, Wallace retornou a Neath, reassumindo as atividades como agrimensor. Ainda em 1845, leu Vestígios da história natural da criação (Anônimo 1844), livro cujos argumentos transformistas o impressionariam bastante [2]. Ele e Bates mantiveram contato e, a certa altura, começaram a arquitetar uma viagem conjunta a algum lugar “remoto e inexplorado”. Em 1847, tendo como referência os relatos do naturalista estadunidense William Henry Edwards (1822-1902), os dois escolheram como destino a cidade de Belém (Pará, na época) [3].

Em 26/4/1848, após alguns meses de preparação, os dois jovens naturalistas – Wallace e Bates estavam então com 25 e 23 anos, respectivamente – finalmente embarcaram. A viagem da Inglaterra (Liverpool) ao Brasil (Belém) durou um mês.

Nas palavras de Wallace (1979, p. 17; grafia original) [4]:

Foi na manhã do dia 26 de maio de 1848 que, depois de uma rápida viagem de 29 dias, tendo partido de Liverpool, ancoramos defronte à barra meridional do Amazonas e tivemos nossa primeira visão das terras sul-americanas. À tarde, veio um piloto a bordo, e, na manhã seguinte, navegamos rio acima com o vento de feição. Por cerca de 50 milhas não se podia distinguir se aquelas águas tranqüilas e descoloridas seriam do rio ou do oceano, pois não se enxergava a margem setentrional, enquanto que a meridional se achava a uma distância de 10 ou 12 milhas. Ancoramos novamente no dia 28, pela madrugada, e quando o sol nasceu num céu sem nuvens, divisamos a cidade do Pará [Belém], rodeada pela densa floresta. Destacavam-se, acima de todas, as copas das palmeiras e bananeiras. Nossos olhos alegravam-se duplamente com a bela visão dessas plantas em seu estado natural, elas que tantas vezes admiramos nas estufas de Kew e de Chatsworth. As canoas que passavam com sua variegada tripu-lação composta de negros e índios, os urubus que pairavam acima de nossas cabeças ou que caminhavam preguiçosamente pela praia, os ban-dos de andorinhas que pousavam sobre os telhados das igrejas e casas, tudo servia para ocupar nossa atenção. Por fim, vieram os funcionários da Alfândega e tivemos permissão de descer em terra.

Eles se estabeleceram nas proximidades de Belém. Viajaram juntos alguns meses. A partir de junho de 1849, aparentemente após uma desavença, passaram a viajar separados. Wallace passou a explorar uma região mais ao norte: subiu o rio Negro, chegando até a freguesia de São Gabriel (atual São Gabriel da Cachoeira), no noroeste do Amazonas; adentrou em território venezuelano, onde permaneceu algum tempo; regressou e, seguindo o curso do rio Uaupés, fez o caminho de volta até Belém e de lá até a Inglaterra. Bates subiu o rio Amazonas, indo até Santarém; explorou o rio Tapajós; retomou o curso do Amazonas e subiu o Solimões, indo até a Vila de Ega (atual Tefé), onde ficou por vários anos; foi até a foz do rio Javari, no sudoeste do Amazonas, já na divisa com o Peru; fez então o percurso de volta até Belém.

Wallace permaneceu na Amazônia até julho de 1852, enquanto Bates ficaria na região até junho de 1859 [5].

Resgate em alto-mar

O regresso de Wallace à Inglaterra quase se converteu em tragédia. Em 12/7/1852, ele embarcou no Helen, um brigue de 235 toneladas, com destino a Londres. A embarcação saiu de Belém transportando “cerca de 120 toneladas de borracha e diversas de cacau, colorau, piaçaba e óleo de copaíba” (Wallace 1979, p. 240). As primeiras três semanas transcorreram sem incidentes. Na manhã de 6 de agosto, porém, o brique pegou fogo e, em questão de horas, o incêndio se alastrou. A carga principal foi destruída, incluindo o óleo de copaíba, que serviu de combustível para alimentar as chamas. Wallace perdeu a bagagem (coleções, manuscritos etc.).

Segundo Wallace (1979, p. 240-5), o incêndio começou quando o Helen estava próximo às coordenadas 30° N e 52° W, a pouco mais de 1.100 km de distância das Bermudas, a massa de terra firme conhecida mais próxima. Utilizando os botes salva-vidas, a tripulação e os passageiros conseguiram se salvar; por fim, na tarde do dia 15, todos foram resgatados pelo Jordeson, brigue que havia saído de Cuba com destino a Londres. O resgate ocorreu próximo a 32° N e 60° W, a uns 300 km das Bermudas, justamente para onde os náufragos rumavam.

A viagem no Jordeson teve alguns percalços – além do aumento ines-perado no número de passageiros, condições meteorológicas adversas prolongaram a viagem bem além do previsto. Em 1º de outubro, a embarcação atracou em Deal, cidade portuária a sudeste de Londres, e Wallace pôde novamente colocar os pés em terra firme.

Biogeografia: a regionalização da vida

Wallace se converteu em um coletor profissional e colecionar espécimes (insetos, aves, mamíferos etc.) passou a ser o seu ganha-pão. Entre 1854 e 1862, esteve no sudeste asiático – Malásia Peninsular, Singapura, Sumatra, Java, Bornéu, Timor, Celebes, Molucas; além da Nova Guiné e diversas ilhas menores, já na região australiana. Diferentemente do que se passou em sua viagem ao Brasil, dessa vez não houve incidentes, tendo ele enviado à Inglaterra uma significativa coleção de história natural.

As viagens e o trabalho de campo deram a Wallace uma detalhada visão a respeito da distribuição geográfica das espécies. Passou a escrever sobre o assunto, a ponto de ser visto hoje como um dos criadores da biogeografia (ver Brown & Lomolino 2006). Organizou e apresentou suas ideias em três livros originais, O arquipélago malaio: A terra do orangotango e da ave-do-paraíso (Harper, 1869); A distribuição geográfica dos animais, em dois volumes (Harper, 1876); e Vida insular: Ou, O fenômeno e as causas das faunas e floras insulares (Macmillan, 1880).

No livro de 1876, ele propôs um sistema de classificação de acordo com o qual a fauna terrestre mundial estaria distribuída em seis grandes regiões: (i) região Australiana (incluindo Austrália, Nova Guiné e ilhas próximas); (ii) Etiópica (África, exceto a borda norte); (iii) Neártica (América do Norte, incluindo boa parte do México); (iv) Neotropical (América Central e do Sul); (v) Oriental (sul e sudeste da Ásia, incluindo Índia, Tailândia, Vietnã etc.); e (vi) Paleártica (Europa, borda mediterrânea da África e o restante da Ásia). Com alguns ajustes, o modelo continua de pé ainda hoje.

Coda

Hoje em dia, porém, o nome de Wallace é mais comumente associado à teoria da evolução por seleção natural, da qual ele foi um dos criadores. É compreensível; afinal, essa talvez seja a mais influente de todas as teorias científicas.

Em 1866, Wallace casou com Annie Mitten (1846-1914). O casal teve três filhos, Herbert Spencer (1867-1874), Violet Isabel (1869-1945) e William Greenell (1871-1951). Moraram em mais de uma dezena de endereços (Lester 2014), tanto em Londres como em outras localidades, nos condados de Essex, Surrey e Dorset. ARW faleceu em Dorset, para onde o casal havia se mudado em 1889 – primeiro para Parkstone (1889-1902), depois para Broadstone (1902-1913). Na ocasião, eles moravam em uma casa que havia sido idealizada e construída pelo próprio naturalista. Quando faleceu, aos 90 anos, Alfred Russel Wallace – cuja reputação, na época, não se restringia à sua fama como coautor da teoria da evolução por seleção natural – já havia assegurado um lugar próprio na galeria dos grandes personagens da história da ciência.

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Notas

[1] Como no caso do artigo anterior, o título deste artigo faz alusão ao filme ‘Angels & insects’ (1995), de Phillip Haas, adaptado do romande ‘Morpho eugenia’ (1992), da escritora inglesa A. S. Byatt (assinatura literária de Antonia Susan Duffy [nascida em 1936]).
[2] O autor foi o geólogo e editor escocês Robert Chambers (1802-1871), mas sua identidade só foi revelada postumamente, na 12ª edição (1884). Desconheço versão em português do livro.
[3] O destino teria sido inspirado em Edwards (1847), mas há controvérsias a respeito do real objetivo da viagem (ver van Wyhe 2014).
Ao longo dos séculos 16 e 17, o Novo Mundo foi visitado por europeus de diferentes origens e propósitos (conquistadores, missionários, saqueadores). Naturalistas passaram a vir com alguma regularidade a partir do século 18, muitos dos quais estiveram no Brasil, incluindo (em ordem de nascimento): Georg Markgraf (1610-1648) e Willem Piso (1611-1678), coautores da Historia naturalis Brasiliae (1648), obra pioneira na descrição da flora e fauna brasileiras; Charles-Marie de La Condamine (1701-1774); Daniel Solander (1733-1782), colaborador de Carl von Linné (1707-1778); Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853); Johann Baptist von Spix (1781-1826) e Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que trabalharam juntos durante anos. Martius foi um dos organizadores da Flora Brasiliensis, ainda hoje uma obra de referência importante. Ausência intrigante nessa lista é o nome do naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), o ‘pai esquecido do ambientalismo’ (Wulf 2016), cuja obra inspirou gerações de naturalistas. Ele fez parte de uma expedição que percorreu as Américas (1799-1804), mas não foi autorizado a entrar em território brasileiro.
[4] Em 1939, a Companhia Editora Nacional publicou uma primeira versão em português. Temos, assim, duas versões, a de 1939, traduzida por Orlando Torres, e a de 1979, traduzida por Eugênio Amado.
[5] Quando Wallace e Bates chegaram ao país, a Amazônia brasileira correspondia a uma única unidade política, a província do Grão-Pará. (A província do Amazonas foi criada em 1850.)
Em 1849, o irmão caçula de ARW, Herbert Edward, veio ao Brasil, acompanhando o naturalista Richard Spruce (1817-1893). Vítima de febre amarela, Herbert faleceu em Belém, dois anos depois. Sobre a presença simultânea de Wallace, Bates e Spruce em terras brasileiras, v. Hemming (2015).

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Referências citadas

+ Anônimo. 1844. Vestiges of the natural history of creation. Londres, J Churchill.
+ Brown, JH & Lomolino, MV. 2006 [1998]. Biogeografia, 2ª ed. Ribeirão Preto, Funpec.
+ Edwards, WH. 1847. A voyage up the river Amazon: Including a residence at Pará. Londres, J Murray.
+ Hemming, J. 2015. Naturalists in paradise: Wallace, Bates and Spruce in the AmazonLondres, Tames.
+ Lester, A. 2014. Homing in: Alfred Russel Wallace’s homes in Britain (1852-1913). The Linnean 30: 22-32.
+ Wallace, AR. 1979 [1889]. Viagens pelos rios Amazonas e Negro, 2ª ed. BH, Itatiaia & Edusp.
+ Wulf, A. 2016. A invenção da natureza: A vida e as descobertas de Alexander von HumboldtSP, Crítica.
+ van Wyhe, J. 2014. A delicate adjustment: Wallace and Bates on the Amazon and ‘the problem of origin of species’. Journal of the History of Biology 47: 637-59.

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[Nota adicional: artigo extraído e adaptado do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações adicionais a respeito da obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

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